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Guerra na Ucrânia União Europeia

Funeral russo e festa francesa unem ultranacionalismo europeu

Morte de bufão russo Jirinovski e ascensão de Marine Le Pen são capítulos da mesma história

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São Paulo

Quando desceu do palco de seu último discurso na campanha do primeiro turno da eleição presidencial francesa, na noite de quinta (7), em Perpignan, no sul do país, Marine Le Pen, 53, estava em êxtase.

Sua fala ultranacionalista, diluída em uma versão "gente como a gente", a fez encostar no titular do Eliseu, Emmanuel Macron, que se vê acuado pelo revertério econômico associado às sanções ocidentais contra a Rússia devido à guerra na Ucrânia.

Putin ao lado do caixão com o corpo de Vladimir Jirinovski no funeral em Moscou
Putin ao lado do caixão com o corpo de Vladimir Jirinovski no funeral em Moscou - Guennadi Guneev - 8.abr.22/Kremlin/Sputnik/Reuters

Em Moscou, 2.900 km a nordeste dali, o corpo do bufão político Vladimir Jirinovski era preparado para seu funeral, que ocorreu em grande estilo na sexta-feira (8), com a presença de ninguém menos do que o comandante da invasão que chocou o mundo, o presidente Vladimir Putin.

O deputado, de 75 anos, morrera na véspera, após passar o ano internado por complicações ligadas à Covid. Mas seu ideário segue vivo em Marine, com quem tinha uma relação que transcendia a política.

Em 1991, Jirinovski surgiu aos olhos do mundo ao chegar em terceiro na primeira eleição presidencial russa, ainda sob o manto da União Soviética, vencida por Boris Ielstin. Dono de um estilo que faria Donald Trump corar, ele se projetou na transição do comunismo como uma voz de radicalismo extremo.

Assim fundou o LDPR (Partido Liberal Democrata da Rússia, na sigla russa) no fim de 1992, ano em que se encontrou pela primeira vez com o pai de Le Pen, o fascistoide Jean-Marie, líder da FN (Frente Nacional).

À época, ambos eram vistos como excentricidades no cenário europeu, advogando políticas xenofóbicas e antissistema que não seriam alienígenas em grupos de WhatsApp bolsonaristas. Dez anos depois, o francês, hoje com 93 anos, chegou ao segundo turno da eleição presidencial. Acabou esmagado pela direita tradicional, na figura do reeleito Jacques Chirac.

Jirinovski era mais colorido, por assim dizer. Deputado perene, brigava fisicamente no plenário. Sugeriu ao longo da vida pública que os russos "lavassem suas botas na água quente do Índico", que a Alemanha reunificada era o Quarto Reich, que seria necessário obliterar nuclearmente a Polônia e os Estados bálticos, além de sugerir o envio dos ucranianos aos EUA, para ficar nas mesuras da grande política.

Em 1996, ele assustou o mundo ao chegar perto da eleição presidencial russa em segundo lugar nas pesquisas, à frente do caquético Ieltsin e atrás do eterno líder comunista pós-soviético Guennadi Ziuganov. Para alívio do mundo, murchou para a quinta posição ao fim.

Mas seu partido havia conquistado espaço, chegando a um ápice de 23% das cadeiras do Parlamento no pleito de 1993. Os turbulentos 1990 passaram, e a era Putin emergiu, quando Jirinovski encontrou rapidamente seu lugar com Ziuganov na dita oposição consentida ao regime.

Consentida até a hora de votações importantes ou crises nacionais, quando se alinhava ao Kremlin, assim como os comunistas. Ainda assim, para bater seu bumbo, Jirinovski participou de todas as eleições presidenciais até aqui, exceto a de 2004, a primeira reeleição de Putin.

Nunca perdeu o contato com seus amigos franceses e líderes da liga xenofóbica que gerou calafrios na Europa nos anos 2010. Estava longe, contudo, de ser um irrealista, como prova um texto que escreveu a pedido da revista Time em 2011, quando Marine emergiu como uma das 100 personalidades do ano.

"[Jean-Marie] me dizia que os nacionalistas franceses talvez tivessem ido muito longe, em particular com suas posições antigay, antiaborto, anti-imigrantes e às vezes antissemitas. Eles arruinaram sua relação com a imprensa e com grande parte da sociedade europeia. Le Pen entendeu que tinham de virar algo diferente, e esse é o papel de sua filha", escreveu.

Marine, a filha, não só amainou o discurso extremo como até mudou o nome da FN para Reunião Nacional. Agora, está sendo favorecida indiretamente por uma guerra que Jirinovski não só apoiou, mas de forma algo fantasmagórica chegou a prever —em termos tão precisos que sua propalada amizade com Putin pode ter lhe dado algum grau de conhecimento dos planos do Kremlin.

Em 27 de dezembro passado, subiu à tribuna da Duma (Câmara baixa do Parlamento) e disse: "Às 4h de 22 de fevereiro, vocês vão sentir nossa nova política. Eu gostaria que 2022 fosse um ano pacífico. Mas eu amo a verdade, por 70 anos venho dizendo a verdade. Não será pacífico, será um um ano em que a Rússia será grande novamente".

"Jirinovski sabe das coisas", confidenciou o analista político Konstantin Frolov ao repassar o vídeo com a fala para a reportagem, cinco dias antes da guerra. Não foi levado muito a sério, mas devia: por volta das 4h do dia 24, as bombas caíram na Ucrânia.

Putin nunca empoderou Jirinovski, mas o respeitava e contava com seu apoio. Ideologicamente, as maluquices pan-eslavas esposadas pelos ultranacionalistas russos não diferem da prática em Mariupol, a construção da "Nova Rússia" ligando o Donbass à Crimeia anexada em 2014.

Não se espera que Marine, que terá de lutar contra a união que tomou a França em 2002 contra seu pai e em 2017 contra si no provável segundo turno, tome o mesmo caminho agressivo. Mas algo do espírito de Jirinovski estará vivo na filha do grande amigo do russo, como parte de uma mesma história e pelo fato de ser próxima de Putin —e isso diz muito após a vitória recente de aliados do Kremlin na Hungria e na Sérvia.

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