Guerra na Ucrânia alimenta clima de paranoia, e russos denunciam uns aos outros

Vladimir Putin instiga polarização na sociedade com novas leis que criminalizam dissidência

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Anton Troianovski
The New York Times

Marina Dubrova, uma professora de inglês na ilha russa de Sacalina, no Pacífico, mostrou um vídeo no YouTube para sua classe de oitava série, no mês passado, em que crianças cantam animadamente, em russo e ucraniano, sobre um "mundo sem guerra". Depois que ela o passou, um grupo de meninas ficou para trás durante o recreio e questionou a professora sobre suas opiniões.

"A Ucrânia é um país separado", disse-lhes Dubrova, 57. "Não é mais", uma das garotas retrucou.

Alguns dias depois, a polícia foi procurar a professora na escola, na cidade portuária de Korsakov. No tribunal, ela ouviu uma gravação daquela conversa, aparentemente feita por uma das alunas. O juiz lhe aplicou uma multa de aproximadamente R$ 2.000 por "desacreditar em público" as Forças Armadas da Rússia. A escola a demitiu por "comportamento amoral", disse ela.

Pessoas caminham em frente a um prédio adornado com a letra Z, que se tornou um símbolo de apoio à guerra russa na Ucrânia, em São Petersburgo
Pessoas caminham em frente a um prédio adornado com a letra Z, que se tornou um símbolo de apoio à guerra russa na Ucrânia, em São Petersburgo - Olga Maltseva - 4.abr.22/AFP

"É como se todos tivessem mergulhado numa espécie de loucura", disse Dubrova em entrevista por telefone, refletindo sobre o clima pró-guerra ao seu redor.

Sob o incentivo direto do presidente Vladimir Putin, os russos que apoiam a guerra contra a Ucrânia começam a se voltar contra o "inimigo interno". Os episódios ainda não são um fenômeno de massa, mas ilustram a paranoia e a polarização crescentes na sociedade russa.

Os cidadãos estão se denunciando entre si, num eco assustador do terror de Josef Stálin, instigado pela retórica oficial viciosa e permitido por novas leis abrangentes que criminalizam a dissidência.

Há relatos de estudantes que entregaram professores e pessoas que denunciaram vizinhos e até clientes de restaurante na mesa ao lado. Em um shopping de Moscou, foi o texto "não à guerra" exposto em uma oficina de computadores e relatado por um passante que fez o dono da loja, Marat Grachev, ser detido.

Em São Petersburgo, um veículo de notícias local documentou o furor sobre suspeitas de simpatia pró-Ocidente na biblioteca pública. Tudo porque um funcionário da biblioteca confundiu a imagem de um estudioso soviético, num cartaz, com a do escritor americano Mark Twain.

Na região ocidental de Kaliningrado, as autoridades enviaram a moradores mensagens de texto pedindo que eles dessem números de telefone e endereços de email de "provocadores" que contestem a "operação especial" na Ucrânia, relataram jornais russos. Eles podem fazer isso com facilidade por meio de uma conta especial no aplicativo de mensagens Telegram. Um partido político nacionalista criou um site pedindo que os russos denunciem "pragas" na elite.

"Estou absolutamente seguro de que vai começar uma limpeza", disse Dmitri Kuznetsov, membro do Parlamento que dirige o site, prevendo que o processo vai se acelerar depois que a "fase ativa" da guerra terminar. Então esclareceu: "Não queremos que ninguém seja morto, nem que as pessoas sejam presas".

Mas é a história das execuções e de prisões políticas em massa na era soviética e a denúncia de concidadãos encorajada pelo estado que inspiram o atual clima de repressão que se aprofunda na Rússia.

Putin deu o tom em um discurso em 16 de março, ao declarar que a sociedade russa precisava de uma "autopurificação", em que as pessoas "distinguiriam os verdadeiros patriotas da escória e dos traidores, e simplesmente os cuspiriam como moscas que entrassem acidentalmente em suas bocas".

Na lógica soviética, os que decidissem não delatar seus concidadãos podiam ser considerados suspeitos.

"Nessas condições, o medo está se instalando nas pessoas de novo", disse Nikita Petrov, um importante acadêmico, sobre a polícia secreta soviética. "E esse medo manda que você denuncie."

Em março, Putin assinou uma nova lei que pune com até 15 anos de prisão as declarações públicas contrárias ao que o Kremlin chama de "operação militar especial" na Ucrânia. Foi uma medida dura, mas necessária, disse o governo, diante da "guerra de informação" do Ocidente contra a Rússia. Promotores já usaram a lei contra mais de 400 pessoas, segundo o grupo de direitos humanos OVD-Info, incluindo um homem que segurou um pedaço de papel com oito asteriscos. "Não à guerra" em russo tem oito letras.

"É uma espécie de grande piada que estamos vivendo, infelizmente", disse Aleksandra Bayeva, chefe do departamento jurídico da OVD-Info, sobre o absurdo de alguns processos ligados à guerra. Ela disse que viu um aumento acentuado da frequência com que pessoas denunciam outros cidadãos. "A repressão não é feita só pelas mãos das autoridades do estado", disse ela. "Também é feita pelos cidadãos comuns."

Na maioria dos casos, as punições relacionadas a críticas à guerra se limitaram a multas; para os mais de 15 mil manifestantes contra a guerra presos desde que a invasão começou, em 24 de fevereiro, as multas são a pena mais comum, mas alguns foram condenados a até 30 dias de prisão, disse Bayeva. Algumas pessoas estão sendo ameaçadas com penas mais longas.

Na cidade de Penza, no oeste, outra professora de inglês, Irina Gen, chegou à classe um dia e encontrou um grande "Z" rabiscado na lousa. O governo russo tem promovido a letra como símbolo de apoio à guerra, depois que ela foi pintada nos veículos militares russos na Ucrânia.

Gen disse aos alunos que parecia a metade de uma suástica. Mais tarde, um aluno da oitava série perguntou a ela por que a Rússia estava sendo banida das competições esportivas na Europa.

"Acho que é a coisa certa a se fazer", respondeu Gen. "Até que a Rússia comece a se comportar de maneira civilizada, isso continuará." "Mas não sabemos todos os detalhes", disse uma garota, referindo-se à guerra. "Isso mesmo, vocês não sabem nada", disse Gen, 45.

Uma gravação desse diálogo apareceu em uma conta popular no Telegram que costuma postar informações privilegiadas sobre casos criminais. O Serviço Federal de Segurança, órgão que sucedeu a KGB soviética, a chamou e advertiu que suas palavras culpando a Rússia pelo bombardeio de uma maternidade em Mariupol, na Ucrânia, no mês passado eram "100% um caso criminal".

Agora ela está sendo investigada por causar "graves consequências" sob a lei de censura do mês passado, punível com dez a 15 anos de prisão. Mas outros que foram alvo de denúncias de cidadãos tiraram lições mais animadoras da experiência. Na ilha de Sakalina, depois que canais de notícias relataram o caso de Dubrova, um de seus ex-alunos levantou o equivalente a R$ 750 em um dia para ela, antes que a professora lhe dissesse para parar, que ela mesma conseguiria o dinheiro.

Na sexta-feira (8), Dubrova entregou o dinheiro a um abrigo de cães.

Em Moscou, Grachev, o dono da oficina de computadores, disse que achou notável que nenhum de suas centenas de clientes ameaçou denunciá-lo pelo texto "não à guerra" que ele exibiu em destaque numa tela atrás do balcão durante várias semanas depois da invasão. Afinal, comentou, ele foi obrigado a duplicar o preço de alguns serviços por causa das sanções ocidentais, o que certamente irritou alguns clientes.

Em vez disso, muitos lhe agradeceram.

O homem que parece ter denunciado Grachev era um passante que ele chama de "vovô", que, segundo ele, advertiu seus empregados duas vezes no final de março de que estavam violando a lei. Grachev, 35, disse acreditar que o homem pensava estar fazendo seu dever público ao denunciar a loja à polícia, e provavelmente não tinha acesso a informação além da propaganda estatal.

Grachev foi multado em 100 mil rublos (R$ 5.900). Um político de Moscou escreveu sobre o caso numa rede social, incluindo detalhes bancários de Grachev para quem quisesse ajudar. Grachev disse que em menos de duas horas recebeu dinheiro suficiente para pagar a multa. Ele recebeu 250 mil rublos ao todo, segundo disse, de cerca de 250 doadores, e pretende doar o excedente à OVD-Info, que lhe ofereceu ajuda.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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