Descrição de chapéu Financial Times Guerra na Ucrânia Rússia

Guerra na Ucrânia ameaça aprofundar crise demográfica na Rússia

Conflito obriga trabalhadores qualificados a fugir, aumentando impacto das baixas taxas de nascimentos e mortes pela pandemia

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Federica Cocco Polina Ivanova
Londres | Financial Times

Questionado sobre ​o que o mantém acordado à noite, Vladimir Putin identificou um problema: o declínio populacional da Rússia e a ameaça que isso representa para a economia do país.

Em entrevista coletiva em novembro passado, enquanto concentrava tropas na fronteira com a Ucrânia, o presidente russo disse que a taxa de nascimentos do país caiu durante a Segunda Guerra e também no início dos anos 1990, após a queda da União Soviética, o que causou um déficit na força de trabalho.

"De um ponto de vista humanitário e econômico e da perspectiva de reforçar nossa nação, o problema demográfico é um dos mais importantes", acrescentou ele.

Pedestres em frente a teatro adornado com a letra 'Z', um dos símbolos russos da guerra, em Moscou
Pedestres em frente a teatro adornado com a letra 'Z', um dos símbolos russos da guerra, em Moscou - Natalia Kolesnikova - 30.mar.22/AFP

Mas a invasão da Ucrânia agravou o problema. A guerra provocou um êxodo de profissionais instruídos e provavelmente produzirá milhares de mortes, muitas delas de jovens que deveriam contribuir para a economia nas próximas décadas, aumentando o impacto da pandemia do coronavírus, durante a qual houve 1 milhão de mortes além dos níveis normais.

Esses desafios, em meio às sanções paralisantes impostas pelo Ocidente, que poderão empurrar a Rússia para sua mais profunda recessão desde o início dos anos 1990, ameaçam criar um turbilhão econômico duradouro no país, o que pode incentivar as pessoas a ter menos filhos.

"Com esse conflito insano, Putin está dando um tiro no próprio pé. As maiores perdas não virão do conflito, mas de uma profunda crise econômica na Rússia", disse Ilia Kachnitski, professor-assistente no Centro Interdisciplinar sobre Dinâmica Populacional na Dinamarca.

Em um sinal de que a Rússia teme uma fuga de cérebros em consequência da guerra, o governo isentou no mês passado os jovens trabalhadores do setor tecnológico do serviço militar obrigatório, ofereceu taxas de hipoteca vantajosas e liberou as empresas de TI do imposto de renda e de inspeções, assim como garantiu seu acesso a empréstimos baratos.

A liderança russa esperava que o setor tecnológico acelerasse o desenvolvimento econômico e, mais recentemente, apoiasse a recuperação pós-pandemia. Mas a Rússia sofreu uma forte fuga de cérebros no setor tecnológico desde o início da guerra, no final de fevereiro.

Nas quatro semanas seguintes, entre 50 mil e 70 mil trabalhadores do setor deixaram o país, informou um diretor da associação setorial em março, num relatório a uma comissão parlamentar russa. Outras 70 mil a 100 mil pessoas provavelmente sairão em abril, afirmou Serguei Plugotarenko, chefe da Associação Russa de Comunicações Eletrônicas, segundo a agência de notícias estatal Interfax. "Claramente há uma emigração em escala e ritmo que nunca vimos", disse o demógrafo independente Alexei Rakcha.

Jean-Christophe Dumont, diretor da divisão de migração internacional da OCDE, disse que o volume de pessoas que deixava a Rússia antes não era uma fonte de preocupação para o governo. "Essa situação agora certamente está mudando o jogo, e vários países estão aproveitando a oportunidade."

Israel criou uma "rota verde" facilitada para os refugiados da Ucrânia e da Rússia. "Desde o início da guerra, quase tantos russos quanto ucranianos se mudaram para Israel", disse Dumont. Ele acrescentou que Tel Aviv está visando a pessoas que trabalham em robótica, aeronáutica e nanotecnologia.

Putin tentou aumentar a população da Rússia. Em fevereiro, um legislador russo disse que o país forneceu 770 mil passaportes para pessoas da contestada região do Donbass, segundo a agência estatal de notícias Tass. Mas a Rússia está perdendo muitos dos que são instruídos e ricos o suficiente para partir, num momento em que foi atingida pela pandemia.

Mais de 1 milhão de pessoas morreram na Rússia entre março de 2020 e janeiro de 2022 além do número esperado, com base nas tendências no mesmo período entre 2015 e 2019, segundo análise de dados do governo feita pelo Financial Times. Esse número é bem maior que a cifra oficial da Rússia de mortos pela Covid –360 mil– e está entre os níveis mais altos de excesso de mortalidade entre todos os países.

Uma profunda desconfiança das vacinas produzidas no país foi amplamente citada como o motivo da baixa aceitação dos imunizantes. Segundo Dumont, a recusa do governo a aplicar vacinas de mRNA, em favor das menos eficazes produzidas na Rússia, contribuiu para a emigração. "Muitos decidiram se estabelecer em países da OCDE porque não queriam voltar e receber a vacina Sputnik", disse ele.

Além da pandemia, o impacto econômico da fuga de cérebros e das sanções provavelmente vai agravar a tendência subjacente de queda da taxa de fertilidade nos próximos anos, segundo especialistas em população. Os economistas temem que a renda possa cair até 12% a 15%.

"Não vejo muito apoio vindo desse governo", disse a economista Elina Ribakova, vice-diretora do Instituto de Finanças Internacionais em Washington. "Eles vão se concentrar em reconstruir as reservas, reconstruir as proteções, depois os gastos militares."

A década seguinte à queda da União Soviética foi marcada por uma grande redução dos nascimentos. Em consequência, há relativamente poucos russos na faixa de 20 e 30 anos, o que prenuncia um novo declínio da população. Os demógrafos geralmente concordam que a população de um país só pode crescer sem imigração líquida se os casais tiverem pelo menos 2,1 filhos em média. A Rússia, assim como muitas economias desenvolvidas, tem taxas de fecundidade muito abaixo disso.

O recuo econômico causado pela guerra será sentido na taxa de fecundidade perto do início do próximo ano, segundo Raksha. Isso significa que Putin, por meio da invasão que ordenou, provavelmente terá a crise demográfica prolongada que ele temia. "A taxa de fecundidade total –o número de filhos que uma mulher média tem– pode cair 10% no próximo ano ou dois, devido à queda da renda", disse Raksha, que espera um "colapso" em 2023, a menos que seja lançado um programa de incentivos substanciais.

"As pessoas estão apenas começando a sentir que poderão perder seus empregos, que tudo ficou mais caro, enquanto os salários não aumentaram."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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