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Guerra na Ucrânia: Putin fomentou o separatismo que cita para justificar a invasão?

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São Paulo

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"É uma guerra de oito anos e dois meses." Assim o ex-embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko, definiu a situação de seu país em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na segunda (25).

Ao responder a pergunta do jornalista Gustavo Simon, editor-adjunto de Mundo na Folha, sobre a possibilidade de escalada do conflito, o diplomata declarou que o país enfrenta a Rússia desde 2014, enquanto o Ocidente "estava aguardando" para agir e pedia calma.

"Ninguém acredita que Ucrânia está resistindo há tanto tempo a essa agressão", afirmou.

Homem caminha com uma sacola de compras; ele passa por um prédio com a fachada escurecida por incêndio e a grade de uma das sacadas caída
Homem caminha diante de prédio destruído em Mariupol, no leste da Ucrânia - Alexander Ermochenko/Reuters

A fala de Tronenko diz respeito aos fatos que explicam a tensão atual e culminaram na invasão do território ucraniano pela Rússia, há 65 dias.

Mas o que aconteceu em 2014 que reflete no conflito de hoje? Resumimos em três pontos:

Protestos e troca de governo

Grandes manifestações iniciadas no ano anterior e que ficaram conhecidas como Euromaidan, ou simplesmente Maidan (a praça de Kiev), exigiram a saída do presidente Viktor Yanukovich. O estopim foi a decisão do governo de suspender o diálogo de aproximação da Ucrânia com a União Europeia e retomar laços com a Rússia de Vladimir Putin —que, como declara para justificar a guerra, via nas alianças de seu entorno com o Ocidente uma ameaça para Moscou.

Yanukovich foi deposto pelo Parlamento e foi substituído, após um governo interino, pelo magnata Petro Poroshenko, aberto a uma aproximação maior com a União Europeia —o desfecho divide a opinião pública como uma revolução pela democracia ou um golpe incentivado pelo Ocidente.

Anexação da Crimeia

A queda de Yanukovich, aliado de Putin, elevou a tensão entre Ucrânia e Rússia. Uma das consequências foi a ocupação da Crimeia —então república autônoma sob controle de Kiev— por tropas russas e a realização de um plebiscito que aprovou por 96,8% a incorporação da área à Federação Russa. O reconhecimento dessa anexação —rejeitada pela Ucrânia e pela ONU— é uma das exigências de Putin para encerrar a atual invasão.

Entenda: A Crimeia, que foi transferida à Ucrânia em 1954 pelo então líder soviético Nikita Krushchov, tem maioria étnica russa. Segundo um censo do governo ucraniano, em 2001 a população era composta por 125 nacionalidades e grupos étnicos, dos quais 58,5% eram russos e 24,4% eram ucranianos.

Desde a anexação, a região vive um limbo geopolítico.

Tensão no leste

Um mês depois da anexação da Crimeia, separatistas de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia, declararam independência com o apoio de Moscou. Próxima da fronteira com a Rússia, a região concentra a população russófona e com ligação cultural e econômica com Moscou. Foi também nesta época que ganharam força na região grupos nacionalistas e neonazistas como o Batalhão Azov, acusados de promover violência contra a população russa.

Segundo a ONU, os combates de 2014 até a invasão deste ano causaram a morte de cerca de 3.000 civis e feriram mais de 7.000.

Para lembrar: Na guerra atual, a Rússia exige o reconhecimento de Donetsk e Lugansk como regiões autônomas, e a nova geografia dos ataques indica a intenção de criar um corredor do leste ucraniano até a Crimeia.

Putin também pede a "desnazificação" da Ucrânia —parte do Batalhão Azov foi incorporada ao Exército nacional, mas o presidente Volodimir Zelenski, que é judeu, nega o elo com os extremistas.

Separatismo

Voltamos à entrevista com o ex-embaixador à TV. Rostyslav Tronenko, que é do leste e teve o russo como a sua primeira língua, rejeita a ideia de que as diferenças culturais configurem um separatismo e diz que disputas dessa natureza só se iniciaram após 2014, fomentadas pela Rússia.

"[Donetsk e Lugansk] Não são regiões separatistas, o separatismo não existia antes da ocupação ilegal, da anexação da república autônoma da Crimeia e da agressão no Donbass", declarou.

Para nos ajudar a refletir sobre essa afirmação, ouvimos dois pesquisadores, que deram opiniões divergentes a respeito do tema:

  • João Claudio Pitillo, professor da Uerj e doutor em história social:

"Não concordo com o ex-embaixador. Se esse separatismo não existisse, ele não estaria se sustentando. Pelo contrário, vemos grupos dessas regiões lutando ao lado da Rússia.

Esse movimento foi fomentado em 2014, sim, mas pelos processos que ocorreram na Euromaidan. Temos a derrubada de um presidente tido como pró-Rússia e a subida ao poder de um presidente que era visto como hostil à Rússia —dois extremos, não houve um meio-termo. O efeito direto disso é que essas regiões se sentiram ameaçadas porque já tinham uma relação com a Rússia —com a Rússia imperial e com a União Soviética. Não tem como separar isso.

São povos que nasceram, cresceram e se desenvolveram juntos ao longo de 70 anos. Não é à toa que têm um idioma muito parecido. Não é à toa que você vê hoje os dois Exércitos em campo precisamdo usar uma faixa colorida no braço, porque muitos equipamentos são os mesmos e os uniformes são parecidos."

  • Omar Ribeiro Thomaz, professor da Unicamp e doutor em antropologia social:

"O ex-embaixador está em grande parte correto. É evidente que existe um processo de construção de uma singularidade na região leste, uma proximidade dessa população com a Rússia. Mas Ucrânia possui uma imensa diversidade étnica e linguística comum nos países remanescentes da União Soviética, mas que não é devedora somente dessa história.

Até o século 19, a Ucrânia foi dividida por muitos impérios e muitos projetos nacionais, que deixaram a língua ucraniana em uma situação frágil: a depender da região onde estavam, as elites optavam por falar o russo, o polonês e o alemão, enquanto o ucraniano era característico do campesinato. Na União Soviética o russo passou a ter novamente um papel importante e continuou a ser usado pela elite urbana, pelo operariado, nas escolas.

Só a partir dos anos 1990 houve uma mudança de status da língua, e muitos falantes russos buscaram aprimorar o seu ucraniano —é o caso do próprio presidente Zelenski. Ele é de fala russa, seus filmes de sucesso foram falados em russo.

Essa ideia de que na Ucrânia há uma perseguição aos falantes russos é algo que Putin vem alimentando desde essa época. Ele invoca uma suposta situação de vulnerabilidade dos russos que estão fora do território como se uma solução possível não estivesse também na construção de uma cidadania nos países onde eles estão."

O que aconteceu nesta sexta (29)

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Trabalhador com uniforme e capacete aparece dentro de prédio em meio a muitos fios e estruturas de parede expostas
Equipes de resgate trabalham em prédio bombardeado em Kiev; capital sofreu ataques no dia de visita do secretário-geral da ONU - David Guttenfelder/The New York Times

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