Índia tenta impedir esforço da OMS para divulgar cifra real de mortes por Covid

Estudo revela que país asiático teve mais de 4 milhões de vítimas da doença, enquanto números oficiais marcam 520 mil

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Stephanie Nolen Karan Deep Singh
The New York Times

Um esforço ambicioso da Organização Mundial da Saúde para calcular o número de mortos pela pandemia de coronavírus no mundo todo descobriu que muito mais pessoas morreram do que se acreditava anteriormente –um total de cerca de 15 milhões até o final de 2021, mais que o dobro do total oficial de 6 milhões relatados pelos países individualmente.

Mas a divulgação da estimativa impressionante –resultado de mais de um ano de pesquisa e análise de especialistas em todo o mundo e a análise mais abrangente da letalidade da pandemia até o momento– foi adiada por meses devido a objeções da Índia, que contesta o cálculo de quantos de seus cidadãos morreram e tentou evitar que se tornasse público.

A mass cremation of COVID-19 victims in New Delhi, India, April 26, 2021. Overwhelmed by the pandemic, the country that is a leading maker of vaccines is facing its own crisis at home Ñ and that may be a problem for a world in need of vaccine. (Atul Loke/The New York Times)
Cremação em massa de pessoas que morreram em consequência da Covid, em Nova Déli, capital da Índia - Atul Loke - 26.abr.21/The New York Times

Estima-se que mais de um terço das 9 milhões de mortes adicionais tenham ocorrido na Índia, onde o governo do premiê Narendra Modi manteve sua própria contagem de cerca de 520 mil.

A OMS mostrará que o número de mortos no país é de pelo menos 4 milhões, de acordo com pessoas familiarizadas com os números que não foram autorizadas a divulgá-los, o que daria à Índia a contagem mais alta do mundo, disseram elas. O New York Times não conseguiu saber as estimativas de outros países.

O cálculo da OMS combinou dados nacionais sobre mortes relatadas com novas informações de localidades e pesquisas domiciliares e com modelos estatísticos que visam contabilizar as mortes omitidas.

A maior parte da diferença na nova estimativa global representa mortes anteriormente não contadas, a maior parte das quais diretamente por Covid-19; o novo número também inclui mortes indiretas, como as de pessoas impossibilitadas de acessar tratamentos para outras doenças por causa da pandemia.

O atraso na divulgação dos números é significativo porque os dados globais são essenciais para se entender como a pandemia se desenrolou e quais medidas poderiam mitigar uma crise semelhante. Isso criou turbulência no mundo normalmente sóbrio das estatísticas de saúde –uma disputa envolta em linguagem anódina está ocorrendo na Comissão de Estatísticas das Nações Unidas, órgão mundial que coleta dados de saúde, estimulada pela recusa da Índia a cooperar.

"É importante para a contabilidade global e a obrigação moral para com aqueles que morreram, mas também é importante na prática. Se houver ondas subsequentes, entender realmente o total de mortes é fundamental para saber se as campanhas de vacinação estão funcionando", disse Prabhat Jha, diretor do Centro de Pesquisa em Saúde Global em Toronto (Canadá) e membro do grupo de trabalho de especialistas que apoia a OMS no cálculo de excesso de morte. "E é importante para a prestação de contas."

Para tentar medir o verdadeiro efeito da pandemia, a OMS reuniu uma coleção de especialistas, incluindo demógrafos, especialistas em saúde pública, estatísticos e cientistas de dados. O Grupo Técnico Consultivo, como é conhecido, vem colaborando entre os países para tentar montar a contabilidade mais completa dos mortos na pandemia.

O Times conversou com mais de dez pessoas familiarizadas com os dados. A OMS planejava divulgar os números em janeiro, mas isso foi continuamente adiado. Recentemente, alguns membros do grupo alertaram a OMS de que, se a organização não divulgasse os números, os próprios especialistas o fariam, segundo três pessoas familiarizadas com o assunto.

Uma porta-voz da OMS, Amna Smailbegovic, disse ao Times: "Pretendemos publicar em abril". A doutora Samira Asma, diretora-geral adjunta da OMS para dados, análises e entrega para impacto, que está ajudando a liderar o cálculo, disse que a liberação dos dados foi "um pouco atrasada", mas que foi "porque queríamos garantir que todos fossem consultados".

A Índia insiste que a metodologia da OMS é falha.

"A Índia sente que o processo não foi colaborativo nem adequadamente representativo", disse o governo em comunicado à Comissão de Estatística da ONU em fevereiro. Também argumentou que o processo não "manteve o rigor científico e o escrutínio racional como esperado de uma organização do porte da Organização Mundial da Saúde". O Ministério da Saúde em Nova Déli não respondeu aos pedidos de comentários.

O país não está sozinho na subcontagem de mortes por pandemia: os novos números da OMS também refletem a subcontagem em outras nações populosas, como Brasil e Indonésia.

A Índia não enviou seus dados de mortalidade total à OMS nos últimos dois anos, mas os pesquisadores da organização usaram números coletados em pelo menos 12 estados, incluindo Andhra Pradesh, Chhattisgarh e Karnataka, que especialistas dizem mostrar pelo menos quatro a cinco vezes mais mortes em decorrência da Covid.

Jon Wakefield, professor de estatística e bioestatística na Universidade de Washington que desempenhou um papel fundamental na construção do modelo usado para as estimativas, disse que uma apresentação inicial dos dados globais da OMS estava pronta em dezembro.

"Mas então a Índia estava descontente com as estimativas. Posteriormente, fizemos todos os tipos de análises de sensibilidade. O trabalho está realmente muito melhor por causa dessa espera, porque exageramos em termos de verificações de modelos e fizemos o máximo que pudemos com os dados disponíveis", disse Wakefield. "E estamos prontos para seguir."

Os números representam o que estatísticos e pesquisadores chamam de "mortalidade excessiva" –a diferença entre todas as mortes que ocorreram e aquelas que deveriam ocorrer em circunstâncias normais. Os cálculos da OMS incluem as mortes diretamente por Covid, mortes de pessoas devido a condições complicadas pela Covid e mortes de pessoas que não tiveram Covid, mas precisavam de tratamento que não puderam obter por causa da pandemia. Os cálculos também levam em conta as mortes esperadas que não ocorreram por causa das restrições da Covid, como as decorrentes de acidentes de trânsito.

Calcular o excesso de mortes globalmente é uma tarefa complexa. Alguns países acompanharam de perto os dados de mortalidade e os forneceram prontamente à OMS. Outros forneceram apenas dados parciais, e a agência teve que usar modelagem para completar o quadro. E também há um grande número de países, incluindo quase todos os da África Subsaariana, que não coletam dados de morte e para os quais os estatísticos tiveram que confiar inteiramente na modelagem.

Asma, da OMS, observou que 9 em cada 10 mortes na África e 6 em cada 10 globalmente não são registradas, e mais da metade dos países do mundo não coletam causas precisas de morte. Isso significa que mesmo o ponto de partida para esse tipo de análise é um "chute", disse ela. "Temos que ser humildes sobre isso e dizer que não sabemos o que não sabemos."

Para produzir estimativas de mortalidade para países com dados parciais ou inexistentes, os especialistas do grupo consultivo usaram modelos estatísticos e fizeram previsões com base em informações específicas do país, como medidas de contenção, taxas históricas de doenças, temperatura e dados demográficos para reunir números nacionais e, a partir daí, estimativas regionais e globais.

O esforço da Índia para impedir a divulgação do relatório deixa claro que os dados da pandemia são uma questão delicada para o governo Modi. "É um passo incomum", disse Anand Krishnan, professor de medicina comunitária do Instituto de Ciências Médicas de Toda a Índia, em Nova Déli, que também trabalha com a OMS para revisar os dados. "Não me lembro de uma época em que tenha feito isso no passado."

Ariel Karlinsky, economista israelense que construiu e mantém o World Mortality Dataset (Banco de Dados Mundial sobre Mortalidade) e que vem trabalhando com a OMS nos números, disse que eles são um desafio para os governos quando mostram um alto excesso de mortes. "Acho muito sensato que as pessoas no poder temam essas consequências", disse Karlinsky.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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