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Guerra na Ucrânia Rússia

Influência da Rússia na América Latina tende a aumentar com Guerra da Ucrânia

Por pragmatismo ou revide, Putin age como reflexo da queda de braço com a Otan no Leste Europeu

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Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor-executivo da Veja. É pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da USP

São Paulo

Em 2004, após conversa com o então presidente mexicano Vicente Fox, o russo Vladimir Putin reconheceu que seu país não possuía os mesmos recursos dos tempos da União Soviética para investir nas relações com a América Latina, ainda que considerasse que a região merecia essa atenção.

Dezoito anos depois, restam evidências de que Putin encontrou recursos e principalmente motivação para ampliar a sua influência na América Latina.

As investidas só ganharam maior atenção com a invasão da Ucrânia e após o posicionamento favorável ao Kremlin ou de neutralidade que alguns países latino-americanos adotaram em votações na ONU ou em declarações de governantes —a exemplo de Jair Bolsonaro.

O presidente russo Vladimir Putin antes de discursar em visita a cosmódromo na região de Amur - Evguêni Biatov - 12.abr.22/Kremlin/Sputnik/Reuters

Nas últimas duas décadas, a Rússia estendeu seus tentáculos na região em sete frentes: comércio em geral, venda de armas, cooperação nuclear para fins civis (com Argentina e Bolívia), petróleo (a petrolífera russa Rosneft ajuda a Venezuela a driblar sanções americanas à sua maior fonte de divisas), perdão ou renegociação de dívidas (favorecendo principalmente Cuba e Venezuela) e apoio político-diplomático.

No campo cibernético, a estratégia não tem sido tanto a interferência direta para influenciar resultados eleitorais (apesar de atividades suspeitas de computadores russos na campanha presidencial mexicana de 2018), como teme o ministro Edson Fachin, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

O esforço maior é a difusão de propaganda pró-Kremlin por meio do canal de TV Russia Today (RT) e do site Sputnik News e a promoção, nas redes sociais, de notícias falsas e memes apócrifos com o objetivo de tumultuar o debate político-eleitoral. O interesse russo é o de solidificar, junto ao público latino-americano, a percepção de declínio do modelo de democracia liberal encampado pelos Estados Unidos.

Esses foram, portanto, os recursos empenhados por Putin. Mas quais teriam sido suas motivações? Quanto a isso, os estudiosos dividem-se basicamente em dois grupos.

O primeiro interpreta o movimento em direção à América Latina, quintal geopolítico dos EUA, como uma resposta à expansão da Otan, aliança militar ocidental, no antigo espaço de influência soviética no Leste Europeu. O segundo credita a aproximação ao pragmatismo comercial (abertura de mercados externos) e à busca de novos aliados internacionais para a construção de uma nova ordem mundial multipolar.

Os pesquisadores do primeiro grupo observam que o comércio da Rússia com os países da América Latina é pífio, apesar do crescimento em valores nominais no período. As trocas comerciais concentram-se em commodities agrícolas, minérios (inclusive para a produção de fertilizantes) e combustíveis fósseis. A exceção são os equipamentos militares.

Entre os países que compraram armamentos e helicópteros russos nos últimos anos estão Colômbia, Equador, Nicarágua, Peru, Bolívia, México e, com grande destaque, a Venezuela. Em 2013, o Brasil iniciou negociações para adquirir o sistema antiáreo Pantsir, de fabricação russa, mas a intenção perdeu força no governo Michel Temer (MDB). Há dois meses, o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) disse que a parceria do Brasil com a Otan era um empecilho para fechar o negócio.

Defensores da hipótese do pragmatismo argumentam que, como segundo maior exportador de armas do mundo (atrás dos EUA), nada mais natural que a Rússia se concentre em abrir novos mercados no setor. Já adeptos do raciocínio de que a crescente influência da Rússia na América Latina é um revide à expansão da Otan observam que os esforços para a venda de armas frequentemente vêm acompanhados de acordos de cooperação militar que permitem ao Kremlin de fato fincar seus coturnos na região.

Isso é especialmente verdade nos casos da Venezuela e da Nicarágua. Com o ditador Daniel Ortega, a Rússia costurou um acordo que lhe possibilita atracar embarcações militares nos portos do país sem autorização prévia. Também há cooperação nas áreas de treinamento policial, vigilância contra o tráfico de drogas e cibersegurança —especialistas americanos veem essas iniciativas como atividades camufladas de inteligência russa na América Central.

Na Venezuela, a cooperação de Moscou com Caracas vai além do que está disponível para consulta pública em documentos oficiais. Segundo o serviço de inteligência da Colômbia, a Rússia opera na Venezuela radares espiões próximos à sua fronteira.

Em pelo menos três ocasiões desde 2008, bombardeiros russos de longo alcance com capacidade nuclear participaram de exercícios militares no Caribe a partir de aeroportos venezuelanos. E, em 2019, no auge das tensões com os EUA, Nicolás Maduro recebeu uma centena de uniformizados russos para dar consultoria a Caracas no caso de uma intervenção armada de Washington.

Em favor da hipótese do "revide" está também o fato de que os momentos de maior aproximação da Rússia com a América Latina, em especial os de caráter militar, ocorreram em 2008, após a curta guerra na Geórgia, que levou à declaração de independência de dois territórios pró-Rússia, e a partir de 2014, quando Putin anexou a península da Crimeia, na Ucrânia, e foi punido com sanções americanas.

Por isso, é de se esperar que o redobrado isolamento internacional da Rússia motive o Kremlin a intensificar ainda mais sua presença na América Latina, buscando aliados entre governos da região sem distinção ideológica. No que se refere ao Brasil, as atitudes de Bolsonaro e Lula diante da guerra, ambos empenhados em minimizar a agressão russa, demonstram que a estratégia de Putin tem dado certo.

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