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The New York Times Guerra da Ucrânia

Potências que se comprometeram com acolhimento de refugiados rompem o próprio pacto

Corrosão do acordo chega a novo extremo com proposta britânica de enviar migrantes para Ruanda

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Max Fisher
Nova York | The New York Times

Por mais de 70 anos o mundo consagrou em leis nacionais e acordos globais uma promessa que era descrita como tendo importância vital: qualquer pessoa que não pode viver em segurança em seu país de origem pode buscar refúgio em outro país.

Se essas pessoas conseguirem comprovar que correm perigo de determinado tipo e se satisfizerem as condições de permanência exigidas pelo país de acolhida, o país tem a obrigação de recebê-las.

Esse ideal nunca foi respeitado perfeitamente, nem mesmo em seus primórdios, após a Segunda Guerra Mundial, quando acolher refugiados era visto como imperativo tanto moral quanto prático para poder reconstruir sociedades despedaçadas, em nome do bem comum.

O premiê britânico, Boris Johnson, em visita a centro de comando da Marinha para patrulha do Canal da Mancha - Dan Kitwood - 14.abr.22/AFP

Mas as próprias potências que propuseram e defenderam a medida vêm corroendo esse pacto nos últimos anos, derrubando aos poucos as próprias obrigações —logo, as do mundo— com uma responsabilidade que no passado eles caracterizaram como sendo crucial para a estabilidade global.

Analistas consideram que o processo alcançou um novo extremo na semana passada, quando o governo do Reino Unido anunciou um novo plano para milhares de estrangeiros que pediram asilo no país. Em vez de processar seus pedidos, os britânicos pretendem conduzi-los a Ruanda, país distante que é quase uma ditadura e na qual a maioria dos migrantes nunca pôs os pés, para que se tornem problema de outros.

Londres não inventou a prática de colocar refugiados e candidatos a asilo em lugares distantes. Há anos governos europeus vêm pagando déspotas e comandantes de guerra em países como Sudão e Líbia para deter migrantes em prol deles. A Austrália terceiriza esse trabalho para uma série de nações insulares às vezes descritas coletivamente como arquipélago gulag. Os EUA foram os pioneiros a empregar essa prática quando, em 1991, desviaram embarcações cheias de haitianos para Guantánamo, em Cuba.

A ascensão da política populista de direita, a reação na Europa contra a onda migratória de 2015 e depois contra a pandemia de Covid, tudo isso acelerou a prática e outras semelhantes: barreiras físicas, patrulhas armadas e políticas "dissuasivas" que intencionalmente elevam o perigo das viagens dos migrantes.

O resultado não é exatamente que o sistema global de refúgio esteja acabado. Governos europeus estão acolhendo milhões de ucranianos deslocados pela invasão russa, por exemplo. O que a medida anunciada no Reino Unido destaca, em vez disso, é que esse sistema, no passado visto e apresentado como uma obrigação universal e legalmente vinculante, hoje está sendo tratado na prática como voluntário.

"É uma desfaçatez tremenda um país oferecer alojamento a ucranianos e menos de um mês depois anunciar que vai enviar todos os outros migrantes para 6.500 km de distância", diz Stephanie Schwartz, estudiosa da política da migração na Universidade da Pensilvânia.

A erosão de um ideal

O engajamento com refugiados e candidatos a asilo sempre foi mais condicional e mais movido pelo interesse próprio do que foi descrito. Nos anos pós-Segunda Guerra, ao mesmo tempo que líderes ocidentais se comprometeram a reassentar os refugiados da Europa em segurança, eles devolveram à força 2,3 milhões de cidadãos soviéticos, muitos deles contra a vontade. Segundo estimativas do historiador Tony Judt, um em cada cinco foram posteriormente executados ou enviados para o gulag.

Mesmo assim, à medida que a Guerra Fria endurecia, foram dando cada vez mais ênfase a seu respeito pelos direitos dos refugiados e pressionaram aliados a fazer o mesmo —como maneira de retratar seu bloco como superior aos governos comunistas, que às vezes impediam cidadãos de fugir.

A observância dos países ocidentais às regras continuou irregular, privilegiando refugiados vindos de países comunistas ou outros que lhes oferecessem algum ganho político.

Mas a mudança real ocorreu quando a Guerra Fria terminou, em 1991, no momento em que o Ocidente perdeu esse incentivo. As populações globais de refugiados subiram vertiginosamente no início dos anos 1990, para 18 milhões, segundo as Nações Unidas —quase nove vezes o número que havia em 1951, quando o mundo consagrou formalmente numa convenção as regras relativas a esse grupo.

Mas na década de 2010, com o aumento do fluxo principalmente de países mais pobres, a reação tornou-se muito diferente. Os EUA adotaram em relação a migrantes da América Central políticas semelhantes às que havia usado com haitianos, negociando com governos, especialmente o mexicano, para impedir refugiados e migrantes de alcançar sua fronteira. Europa e Austrália adotaram estratégias semelhantes.

O resultado foi a criação de anéis concêntricos de centros de detenção, alguns deles notórios por sua brutalidade, na periferia das fronteiras dos países mais ricos do mundo. A maioria fica ao longo das rotas seguidas por refugiados ou perto da divisa que eles esperavam alcançar, proporcionando aos governos uma aparência de estar em conformidade com as regras.

A nova proposta anunciada no Reino Unido, de enviar pessoas para os confins de outro continente, leva esse processo um passo adiante, ressaltando o funcionamento real do novo sistema. Alguns argumentam que consagrar novos acordos ou eliminar os antigos poderia distribuir a responsabilidade global de modo mais sustentável —particularmente no momento em que o aumento dos deslocamentos provocados pela crise do clima confunde as diferenças entre migrantes econômicos e refugiados políticos.

Mas os líderes mundiais têm manifestado pouco interesse por esses planos. E, se o problema é que os governos não querem refugiados e não podem ser compelidos a acolhê-los, substituir um pacto pouco respeitado por outro não mudaria muita coisa.

A ordem emergente

Os dois pesos e as duas medidas aparentes da Europa —ao mesmo tempo que os governos acolhem ucranianos, continuam a fazer de tudo para impedir a entrada de migrantes do Oriente Médio— deixaram especialmente claras as normas implícitas do novo sistema de refugiados.

Cada vez mais os governos aplicam seletivamente os direitos dos refugiados, ostensivamente universais, e frequentemente os aplicam com base em quais grupos demográficos devem receber a aprovação política doméstica. Por exemplo, ao mesmo tempo que anunciava a expulsão de candidatos a asilo que já se encontravam no país, o Reino Unido pedia desculpas por não estar acolhendo mais ucranianos.

Os governos também aprenderam que, desde que não cobrem uns dos outros a responsabilidade por descumprir normas internacionais, não há ninguém exceto seus próprios cidadãos que possa impedi-los —e são eles que frequentemente clamam por essas medidas.

Os partidos populistas de direita viram sua base de apoio crescer muito nos últimos dez anos, graças em parte ao fato de defenderem uma reação contrária à imigração e retratarem as regras sobre refugiados como conspiração para diluir suas identidades nacionais.

Alguns partidos tradicionais resistiram a essa tendência —a Alemanha acolheu 1 milhão de refugiados ao mesmo tempo que assistia à ascensão da ultradireita—, mas outros concluíram que limitar a imigração não branca era preciso para salvar seus partidos e possivelmente suas democracias. Candidatos a refúgio que fugiam de guerras ou da fome foram obrigados a pagar o preço.

Não era a intenção fundadora do pacto global sobre refugiados que os ciclos políticos domésticos determinassem quais famílias deslocadas por desastres pudessem refazer sua vida no exterior e quais seriam condenadas a viver em campos miseráveis de refugiados ou acabar em valas comuns.

Mas se é isso que vai acontecer, então a reação da população britânica à proposta do primeiro-ministro Boris Johnson e seu desafio incomumente descarado ao pacto podem se mostrar reveladores.

"É desumano, é moralmente repreensível, é provavelmente ilegal e pode muito bem ser inviável", disse à BBC David Normington, antiga autoridade do Ministério do Interior. Mas, aos olhos do governo britânico ou de outros, se o plano é ou não verdadeiramente viável pode em última análise depender não tanto de leis ou moralidade, mas do que o público britânico se dispuser a tolerar.

Tradução de Clara Allain

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