Descrição de chapéu
Gideon Rachman

Precisamos pensar sobre uma possível Presidência de Le Pen na França

Candidata de ultradireita ainda pode derrotar Emmanuel Macron, mergulhando a Otan e a União Europeia em tumulto

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Gideon Rachman
Financial Times

"As políticas que eu represento são as políticas que são representadas pelo senhor Trump. Elas são representadas pelo senhor Putin." Essa foi Marine Le Pen falando em 2017. Daqui a apenas duas semanas, ela poderá ser eleita presidente da França.

Le Pen, a porta-estandarte da extrema direita francesa, caminha para o segundo turno da eleição presidencial, quando enfrentará o presidente Emmanuel Macron. O primeiro turno da votação colocou Le Pen menos de cinco pontos percentuais atrás de Macron.

O fato de que 57% dos eleitores franceses optaram por candidatos de extrema esquerda ou extrema direita no primeiro turno –enquanto os partidos de centro tradicionais despencaram– parece ruim para um presidente em exercício de centro, como Macron.

Marine Le Pen, candidata à Presidência da França pelo Reunião Nacional, fala com repórteres em Soucy um dia após ter seu nome confirmado para o segundo turno das eleições - Sarah Meyssonnier - 11.abr.22/Reuters

A primeira pesquisa de intenções de voto para o segundo turno mostra Macron vencendo Le Pen por 54% a 46%. Isso reforçará a opinião de que, embora a disputa esteja apertada, uma vitória de Le Pen continua muito improvável. Mas a realidade incômoda é que a extrema direita hoje na França está alcançando níveis sem precedentes nas pesquisas desde 1945 –e muita coisa pode acontecer em duas semanas.

Em vez de minimizar as chances de Le Pen, é hora de pensar seriamente sobre o que sua possível vitória significaria para a França e outros países. Ela ainda é uma política de "extrema direita"? Ou uma presidência Le Pen poderia ser um choque menor para o sistema do que muitos imaginam?

O fato de Le Pen estar tão perto da Presidência confirma seu sucesso em "desintoxicar" sua imagem. Ela rompeu há alguns anos com seu pai e fundador do partido, Jean-Marie Le Pen –que tem longo histórico de racismo declarado. Nesta eleição, Marine fez campanha em geral sobre questões do custo de vida.

Ela abandonou algumas das políticas mais controversas que ajudaram a afundar sua campanha em 2017, como pedir que a França deixasse o euro e a restauração da pena de morte. E usou a guerra na Ucrânia para se afastar de Vladimir Putin, afirmando que sua opinião sobre o líder russo "mudou".

Mas a admiração anterior por Putin e Trump ainda influi. Assim como eles, Le Pen afirma representar o povo contra a elite e a nação contra os "globalistas". Seu slogan ("devolver o país aos franceses") tem fortes ecos do "fazer a América grande de novo" de Trump e da campanha do brexit "recuperar o controle".

O programa de Le Pen ainda contém muitos atrativos para a extrema direita. Sua promessa de impor uma completa proibição do uso de véus pelas mulheres muçulmanas em público é marcadamente antiliberal e seria inédita na Europa. Ela afirma que a polícia seria instruída a multar as usuárias de jihab –o que parece uma receita para constantes confrontos nas ruas. As relações entre a polícia e as comunidades não brancas ou muçulmanas, já tensas, provavelmente ficariam muito piores.

A esquerda francesa provavelmente irá às ruas em choque se Le Pen ganhar. A França ainda sofre consequências dos protestos dos "coletes amarelos", que levaram a greves, em 2018 e 2019. O país poderia novamente enfrentar tumultos sociais. Na outra ponta do espectro, os mercados financeiros poderiam se assustar com uma vitória de Le Pen, aumentando a sensação de crise.

Uma França amargamente dividida teria implicações para a Europa inteira. As consequências diretas de uma Presidência de Le Pen para a UE também seriam graves (na verdade, ameaças à vida).

Ao longo dos anos, estadistas franceses como Jean Monnet, Robert Schuman e Jacques Delors foram fundamentais para a construção do projeto europeu. Mas Le Pen está decidida a desconstruir a Europa.

Ela promete restaurar a primazia da lei francesa sobre a da UE, o que é incompatível com a filiação à união de 27 países. Ela também promete cortar unilateralmente as contribuições da França ao orçamento da UE.

No interior da Europa, Le Pen cultivou laços com os "democratas iliberais" de Hungria e Polônia. Ela foi rápida para cumprimentar Viktor Orbán pela eleição no início do mês —apesar do fato de ele ser acusado pela UE de violar o Estado de Direito, suprimir a liberdade de imprensa e praticar corrupção. No mínimo, Le Pen não se incomoda com os pecados de Orbán. No máximo, ela os considera um modelo para a França.

Com Le Pen no controle da França, a declaração de Orbán de que seu nacionalismo iliberal representa o futuro da Europa de repente pareceria mais plausível. Matteo Salvini, da Itália (que, como Le Pen, cultivou Putin e Trump), farejaria poder.

As reações em Bruxelas e Berlim a uma vitória de Le Pen seriam de horror —provavelmente seguidas de negociações. Incapazes de abandonar o projeto da UE, os parceiros da França tentariam aparar as arestas das políticas de Le Pen e de algum modo torná-las compatíveis com a continuação da França no bloco.

O governo britânico assistiria com interesse das coxias. Alguns adeptos linha dura do brexit veriam uma vitória de Le Pen como uma vingança e uma oportunidade. Vozes mais sensíveis em Londres temerão as implicações para a união ocidental em plena guerra na Ucrânia.

Le Pen não é apenas uma inimiga da UE. Ela também chamou a Otan de "organização belicista" e prometeu tirar a França de sua estrutura de comando. E se opõe às sanções energéticas à Rússia —ostensivamente porque aumentariam o custo de vida na França. Putin teve algumas semanas desastrosas. Mas os eleitores franceses ainda poderão lhe dar alguma esperança.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.