Presidente de El Salvador está obcecado em silenciar contrapesos, diz jornalista

Diretor de principal jornal independente do país critica lei de Bukele que impõe censura sobre assuntos ligados a gangues

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São Paulo

Primeiro jornal exclusivamente digital da América Latina e referência de jornalismo investigativo sobre corrupção, criminalidade e direitos humanos na América Central, o salvadorenho El Faro amanheceu no último dia 7 sem notícias. Pela primeira vez em seus 24 anos de história, suas reportagens "incômodas", como define a publicação, foram substituídas por um fundo preto, com o texto "No a la Censura" (não à censura).

A estratégia de recorrer ao silêncio para se manifestar contra o silenciamento forçado foi tomada após a aprovação de um projeto, proposto pelo presidente Nayib Bukele, que limita a cobertura da imprensa de um dos temas mais sensíveis para os salvadorenhos: a atuação das "maras" ou "pandillas", facções criminosas que controlam territórios e submetem a população a uma rotina de extorsões, sequestros e homicídios há décadas.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, com o ministro da Defesa Rene Merino em formatura de militares - Marvin Recinos - 4.abr.22/AFP

Anunciada após um recorde de 87 assassinatos atribuídos às gangues em um só fim de semana, a reforma no Código Penal atinge o jornalismo ao prever penas de até 15 anos de prisão a quem "reproduzir e transmitir mensagens ou comunicados originários ou supostamente originários de grupos de delinquentes que possam gerar perturbação e pânico na população".

Desde 2020, reportagens do Faro vêm denunciando que a gestão de Bukele negociou com as três principais gangues do país para que reduzissem o número de homicídios e apoiassem seu partido, o Novas Ideias, nas eleições legislativas. Sob as novas regras, notícias assim não poderiam ser publicadas.

A reforma na lei é o passo mais recente na trajetória cada vez mais autoritária do presidente, que já entrou no Congresso com as Forças Armadas para pressionar parlamentares, destituiu juízes da Suprema Corte e colocou no lugar um grupo que abriu caminho para que ele tente a reeleição, antes vetada. Para o cofundador e diretor do Faro, Carlos Dada, é também o ataque mais grave à liberdade de imprensa em El Salvador desde o fim da guerra civil, há 30 anos.

"Removeram as ferramentas para explicar um fenômeno que afeta diametralmente todo o país", diz o jornalista. "É uma lei da mordaça, uma censura com todas as letras."

Reconhecido com prêmios como Maria Moors Cabot e Anna Politkovskaya, Dada diz que em três anos Bukele está levando o país para um destino parecido ao da Nicarágua sob o ditador Daniel Ortega, no poder desde 2007. "Há um controle absoluto da narrativa. Bukele está obcecado em silenciar os poucos contrapesos que restam, que somos nós e as organizações da sociedade civil."

Foi a primeira vez que vocês passaram um dia sem publicar notícias nos 24 anos do Faro. Por que decidiram fazer esse protesto? Desde a assinatura dos acordos que puseram fim à guerra civil em 1992, essa é a primeira lei que censura a imprensa. Pareceu-nos um passo mais sério no desmantelamento das liberdades e da vida democrática que sofremos sob esse governo.

Removeram as ferramentas para explicar um fenômeno que afeta diametralmente todo o país. Quando noticiamos que um governo faz acordo com gangues, nossas fontes são membros das gangues, que confirmam as negociações. Hoje não poderíamos relatar isso. Não podemos mais falar sobre o controle territorial pelas facções, e os salvadorenhos que moram nas comunidades controladas por elas, onde o Estado não está presente, ficarão invisíveis. É uma lei da mordaça, censura com todas as suas letras.

Qual é o peso da ação das gangues na sociedade salvadorenha hoje e qual é a importância de jogar luz sobre esse assunto? Essas gangues nasceram na Califórnia e, quando acabou nossa guerra civil, antes mesmo de acordarmos um país em paz, os Estados Unidos começaram a deportar salvadorenhos que as integravam. Muitos chegaram sem nem falar espanhol a um país cheio de armas, sem tecido social. E rapidamente começaram a crescer, a tal ponto que hoje são responsáveis ​​por grande parte da violência em El Salvador e no Triângulo Norte. Elas vivem de extorsões, são culpadas pela maior parte das altíssimas taxas de homicídios do país, impõem todo o seu poder pela violência.

Bukele prometeu agir duramente contra as gangues, mas, como mostrou El Faro, acabou negociando com seus líderes, como governos anteriores. Que estratégias ele vem usando para tentar conter esses grupos? Todos os partidos prometem erradicar as gangues e todos se sentaram para negociar com elas. No caso de Bukele, ele começou dando muito protagonismo ao Exército e à polícia, disse que tinha um plano de controle territorial contra o crime. E é verdade que as taxas de homicídios caíram dramaticamente, Mas agora tivemos uma terrível onda de sangue, com 62 mortos em um dia, 87 no total [num fim de semana]. E ficou demonstrado mais uma vez que a diminuição da violência não se devia à presença do Estado.

Já se sabe o que motivou esse recorde de assassinatos? Quiseram dar algum recado? Não sabemos, porque esse governo fechou todo o acesso à informação pública. Mas nossa experiência nos diz que as quadrilhas aprenderam a fazer política. Eles usam os mortos nas ruas para negociar. Tudo isso me leva a concluir que os baixos índices de homicídio no começo do governo ocorreram porque havia negociação com as gangues. E de repente há 87 corpos nas ruas porque algo se quebrou na negociação.

Antes da nova lei, de que maneiras o presidente vinha intimidando a mídia? Bukele faz uma campanha de deslegitimação e linchamento público de jornalistas. Ele nos acusou, em rede nacional, de lavagem de dinheiro. Abriram quatro investigações contra nós por evasão de impostos, nos acusaram de encobrir abuso sexual. Espionaram nossos jornalistas [com o software israelense Pegasus]. Enviaram drones que entraram pela janela de nossas casas, ameaçaram colocar carros-bomba no nosso escritório.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu medidas cautelares para repórteres de El Faro e de outras duas publicações, pois considera que nossas vidas estão em risco por nosso exercício profissional. Já há jornalistas salvadorenhos no exílio.

É um cenário que parece o da Nicarágua sob Daniel Ortega. Estamos avançando para uma situação como a da Nicarágua a passos muito velozes. Em três anos Bukele desmantelou as instituições, o que Ortega levou dez anos para fazer.

A popularidade de Bukele chegou a 90% em 2021. Como está hoje? Segundo as últimas pesquisas, estava entre 80% e 85%. Ou seja, ainda é o presidente com o maior apoio popular de toda a América Latina.

Como ele conseguiu esse feito? Ele também é provavelmente o presidente mais habilidoso em comunicação, principalmente com as novas gerações, por meio das plataformas digitais que os políticos da velha guarda não entendem nem usam. É um mestre no uso de TikTok, Twitter e Facebook.

Não há mais oposição em El Salvador. As instituições estatais estão tomadas, o acesso à informação pública foi fechado. Existe um controle absoluto da narrativa. Por isso ele está obcecado em silenciar os poucos contrapesos que restam, que somos nós e as organizações da sociedade civil. Ele criou a imagem de que somos inimigos do povo, de que não permitimos seu trabalho. É uma estratégia muito bem-sucedida.

Isso lembra a forma como Jair Bolsonaro (PL) tenta minar a confiança da população brasileira no jornalismo. Que semelhanças vê entre os dois líderes? Além do ataque a jornalistas, outro elemento comum é fortalecer as instituições armadas, aumentar o financiamento ao Exército para garantir lealdade à pessoa, não ao Estado. Também existe a estratégia de culpar seus rivais por tudo, seguindo o tradicional manual dos populistas. E outra característica comum —e desculpe que o diga com tanta franqueza— é uma mínima sofisticação intelectual. Eles não têm um claro sentido da história, se veem como o centro da história.

Mas acho que uma diferença fundamental é que o Brasil ainda tem uma grande classe média que não engole esses discursos tão facilmente. Bolsonaro é populista, mas não é popular. E me parece que ele tentou acabar com a esquerda, mas não conseguiu. Governa com forte oposição política.

Uma diferença é a maneira como os dois presidentes lidaram com a Covid. Quando a pandemia começou, Bukele instalou um dos mais rigorosos lockdowns do mundo. Se você saísse na rua, poderia ser preso e enviado a um centro de contenção —e nesse local muitos se infectaram e morreram. Mas foi curioso porque a forma de Bukele encarar a pandemia mudou radicalmente quando ele decidiu trazer o bitcoin [como moeda oficial].

Qual é a relação entre as duas coisas? Os bitcoiners são libertários. Não gostam que lhes peçam certificados de vacinação. El Salvador saiu de uma situação em que não permitia nem mesmo que salvadorenhos entrassem no país para outra em que se aceita qualquer pessoa sem nem precisar estar vacinada. Ou seja, a estratégia é política, não sanitária.

Bukele vem sendo criticado externamente por organizações internacionais e por governos como o dos EUA. Isso poderá detê-lo? Os EUA sempre tiveram grande influência no país, e isso atingiu Bukele no começo de seu mandato. Mas ele percebeu que o governo de Joe Biden tinha como eixo da política para a América Latina combater a corrupção —e a gestão dele é cheia de escândalos. Então, decidiu lutar contra os EUA, e agora as relações são as piores de todos os tempos. Ele está isolado, buscando pontes com governos como os de [Recep] Erdogan [na Turquia] e [Vladimir] Putin [na Rússia].

Voltando à lei da censura sobre as facções criminosas, como farão agora para continuar noticiando o assunto? Ainda não tenho uma resposta. Não quero que um jornalista de El Faro acabe preso por 15 anos por tirar uma foto. Mas estamos conversando com advogados, com outros meios de comunicação de El Salvador, vendo as opções que temos. Porque o silêncio não é uma opção para nós.

O jornalista Carlos Dada, 51, fundador do jornal El Faro, de El Salvador, e vencedor dos prêmios Maria Moors Cabot e Anna Politkovskaia. Foto: Víctor Peña/Divulgação
O jornalista Carlos Dada, 51, fundador do jornal El Faro, de El Salvador - Víctor Peña/Divulgação

Raio-x | Carlos Dada, 51

Exilado com a família no México quando criança devido à guerra civil em El Salvador, voltou ao país aos 26 anos e fundou o jornal El Faro em 1998. Formado em jornalismo na Universidade Yale (EUA), foi professor da instituição e recebeu os prêmios Maria Moors Cabot e Anna Politkovskaia. Atualmente escreve um livro sobre o assassinato do arcebispo de San Salvador monsenhor Oscar Romero, em 1980.

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