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Referendo de Obrador é apenas ponta de guinada autoritária no México

Com ataques à imprensa e à autoridade eleitoral e crescente viés populista, mexicano fragiliza pilares da democracia

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Guarulhos

Há eleições no México, partidos políticos competitivos, acesso ao voto e direitos civis. Em tese, os principais indicadores de uma democracia pulsante. Mas acadêmicos têm alertado para uma guinada autoritária do presidente esquerdista Andrés Manuel López Obrador.

O cenário preocupa especialmente em um país de jovem democracia, que há pouco mais de duas décadas viveu sob a sombra de um regime de legenda única, com o Partido Revolucionário Institucional (PRI) dominando a política por 70 anos. A alçada de AMLO —acrônimo pelo qual o presidente é conhecido— à Presidência parecia inserir no jogo político um catalisador da democracia nacional.

O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, após realizar discurso sobre os três anos de seu governo, na Cidade do México - Francisco Cañedo - 12.abr.22/Xinhua

"Os partidários e a equipe de Obrador remontam a uma ideia de nacionalismo revolucionário que conhecemos muito bem na América Latina e que tem entre suas características o confronto a elementos da democracia liberal, como a liberdade de imprensa e de expressão e o pluralismo político", diz Francisco Valdés, cientista político e pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) .​

Para ele, o principal exemplo do viés populista e da guinada autoritária de Obrador foi demonstrado com a recente realização de um referendo para que a população decidisse se o presidente deveria ou não permanecer no cargo até o fim do mandato.

O mecanismo é constitucional e foi, aliás, introduzido logo no início da gestão de AMLO, que o defendia como uma forma de impulsionar a democracia direta no México.

O problema, explicam os analistas, está no fato de que o plebiscito não foi acionado porque a população duvidava da capacidade do líder, como pressupõe a Carta Magna —Obrador goza de 60% de aprovação. O mecanismo foi acionado majoritariamente por sua base de apoio, impulsionada pelo líder, para dar sustentação pública ao governo.

A imprensa mexicana mostrou que a organização Que Siga la Democracia, cujos principais dirigentes descrevem-se como "obradoristas" nas redes sociais, foi a principal propulsora da coleta dos votos. E políticos do ​Morena, partido de AMLO, usaram verba pública para fazer campanha em prol do referendo.

O plebiscito, ao final, não teve resultados práticos. Só 18% do eleitorado participou, quando ao menos 40% eram necessários para validar a votação. Dos votantes, 90% sinalizaram a vontade de que Obrador siga no cargo, mas a própria realização do referendo jogou combustível nas críticas locais ao governo.

O esquerdista, aliás, destilou críticas ao Instituto Nacional Eleitoral (INE), órgão incumbido de organizar votações no país, que havia manifestado oposição à realização do plebiscito.

"Trata-se de parte de um projeto autoritário para aumentar sua presença política e avançar no sentido de um sistema hegemônico no qual seu partido não perca mais eleições", analisa Valdés. A leitura é a de que Obrador corrói a democracia não apenas ao favorecer a polarização da sociedade, mas também ao atacar pilares clássicos desse regime político, como a liberdade de imprensa.

AMLO elegeu o jornalismo profissional como um de seus principais alvos em falas públicas, em especial nas "mañaneras" —longas falas matinais. Nelas, acumulam-se críticas a veículos de comunicação e jornalistas, recorrentemente chamados de conservadores de modo pejorativo. O discurso de desprezo só faz agravar a já preocupante realidade do setor.

Relatório recente da ONG Artigo 19 mostra que, nos três primeiros anos do governo Obrador, os registros de ataques à imprensa cresceram 85% em relação ao mesmo período da gestão anterior, de Enrique Peña Nieto. Só no ano passado foram contabilizadas 664 agressões.

E avançam a galope os assassinatos de profissionais da imprensa: desde o início de 2022, oito morreram por razões ligadas ao exercício da profissão. Assim, o governo do esquerdista acumula 31 óbitos de jornalistas, período mais violento desde que se tem registro.​

"López Obrador deveria ter, como autoridade máxima do país, a responsabilidade de deixar de estigmatizar a imprensa e gerar esse clima de hostilidade contra veículos que são parte do escrutínio público", diz Vladimir Cortés, diretor da Artigo 19 no México. "O efeito disso é uma carta branca para mais agressões."

Cortés também destaca omissões em relação à transparência. Segundo a ONG, 40% das declarações do presidente mexicano no último ano eram parcial ou completamente falsas —fator que a organização tem apelidado de "desinformação oficial". O diretor aponta ainda tentativas de controlar o espaço digital, com projetos de lei —muitos encabeçados pelo Morena—, que afetam a privacidade e a liberdade de expressão.

A violência contra a imprensa, é verdade, está inserida num rol maior de violência endêmica. Quando eleito, Obrador prometia resolver essa questão e a guerra interna com o narcotráfico, fatores nos quais não parece ter conquistado avanços significativos.

Edgar Baltazar, diretor de investigações da ONG México Unido Contra a Delinquência (MUCD), diz que sob o atual governo os índices de homicídios não saltaram, mantendo-se estáveis, mas em cifras altas. Só no ano passado, o país de cerca de 130 milhões de habitantes registrou 44 mil homicídios, pelos dados oficiais. E persistem os problemas da impunidade e das desaparições forçadas —calcula-se que 95 mil estejam desaparecidos do México, especialmente por razões ligadas à guerra às drogas.

Baltazar afirma que a ineficiência do combate à violência tem origem na militarização da segurança pública, formada por poucos quadros técnicos realmente especializados em grandes investigações. "A Guarda Nacional, hoje com cerca de 100 mil homens, tem 70% de militares em suas fileiras", relata.

Ele também chama a atenção para as desigualdades entre as polícias locais, o que leva a níveis díspares de violência. "Não há uma estratégia regionalizada, que compreenda que o México é formado por 'vários Méxicos' e que os delitos criminais têm diversas dinâmicas no país."

Obrador, porém, ainda sustenta altos índices de apoio popular. Valdés pondera o peso que cerca de 22 milhões de beneficiários de programas sociais do governo —e o enxugamento de mecanismos de controle público e fiscalização desses projetos— exerce sobre a aprovação do político.

Pouco depois de AMLO ser eleito, o instituto sueco V-Dem, que analisa o estado das democracias no mundo, projetou que a ascensão do esquerdista poderia culminar em duas possibilidades: o fortalecimento democrático, com mais políticas de inclusão social e diversidade política; ou, na pior das hipóteses, uma guinada ao autoritarismo, num regime híbrido cada vez mais distante da democracia.

Obrador segue no poder até 2024, intervalo de tempo determinante para compreender a contribuição que o cientista político natural do estado de Tabasco consolidará para a jovem democracia mexicana.

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