Descrição de chapéu China Ásia

Falta de contundência de Bachelet em visita à China frustra ativistas de direitos humanos

Viagem da alta comissária da ONU coincide com vazamento de informações sobre situação do povo uigur em Xinjiang

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Guarulhos

As declarações da alta comissária de direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, após uma rara visita à China, frustraram ONGs de direitos humanos que viam na iniciativa uma oportunidade para instar Pequim a respeitar os direitos humanos, especialmente em Xinjiang, região autônoma na porção oeste do país alvo de acusações de repressão, liderada pelo regime chinês, contra a etnia uigur.

A chilena disse neste sábado (28) que a viagem ao país asiático não configurou uma investigação, mas uma chance de "conversar francamente" com as autoridades chinesas. Em uma curta passagem mais crítica, pediu a Pequim que reveja suas políticas antiterrorismo para evitar "medidas arbitrárias" contra minorias muçulmanas.

Michelle Bachelet em reunião online com o líder chinês, Xi Jinping, durante viagem dela ao país - Xie Huanchi - 25.mai.22/Xinhua

Ela negou que as reuniões em Xinjiang tenham sido supervisionadas pelo regime chinês —a visita não pôde contar com a participação da imprensa devido à pandemia de Covid. Afirmou, ainda, que a visita teria ajudado a estreitar conversas bilaterais com Pequim. Ativistas, no entanto, insistem que as discussões sobre Xinjiang e outras áreas questionadas sejam abertas, não realizadas em fóruns fechados.

A visita da alta comissária —a primeira à China em 15 anos— coincidiu com a divulgação, na última semana, de milhares de documentos e imagens vazados de distritos policiais de Xinjiang, o que elevou a pressão para que a comunidade internacional imponha sanções ao regime comunista liderado por Xi Jinping.

A província de 1,6 milhão de km² —área semelhante à do Amazonas— é um importante polo financeiro: dali, saem 19% da produção global de algodão, 25% dos derivados de tomate e ao menos 40% do polissilício, matéria-prima da indústria eletrônica e de painéis solares, segundo o grupo de pesquisa C4ADS, de Washington.

"Os governos podem, no mínimo, garantir que não sejam cúmplices desses abusos de direitos humanos ao aprovar leis que proíbam as empresas de ter, em suas cadeias de suprimentos, produções que violem os direitos uigures", diz à Folha Koen Stoop, coordenador de políticas do Congresso Mundial Uigur na União Europeia (UE).​

Mas Stoop duvida que o vazamento, publicado inicialmente em veículos como a rede britânica BBC e o jornal francês Le Monde, vá de fato mudar a postura dos governos. "Esperamos, é claro, que seja um alerta para a comunidade internacional, mas a verdade é que se trata do terceiro, quarto ou quinto alerta."

Apelidados de Arquivos da Polícia de Xinjiang, os documentos, aos quais a Folha teve acesso em versão em inglês, foram obtidos em dois condados de maioria uigur em Xinjiang. A província de 25 milhões de habitantes, mostram dados oficiais, tem 10,9 milhões de pessoas da etnia han —a predominante na China— e 11,6 milhões de uigures, povo com fortes laços na Ásia Central, além de minorias muçulmanas.

São mais de 2.800 fotos de uigures detidos, dezenas de documentos, sendo alguns de figuras do alto escalão do regime chinês, e 23 mil arquivos de pessoas presas e colocadas em campos de reeducação. Todos datam de 2017 e 2018, anos iniciais do avanço de Pequim.

A importância, explicam os envolvidos, é ser o primeiro material que demonstra a natureza repressiva dos campos de reeducação. Entre as razões para a detenção de muitos presentes nos arquivos está o envolvimento no que é descrito como atentados terroristas cometidos no passado, desde os anos 1980.

Houve ataques isolados, especialmente nos últimos 20 anos. O regime passou a acusar uigures de promoverem terrorismo e de ter ligações com grupos fundamentalistas internacionais. A situação escalou em 2017, quando Pequim deu início a um plano de alto policiamento e encarceramento na região com a justificativa de combater o separatismo e o terrorismo. Era uma espécie de plano de cinco anos para apaziguar a situação e estreitar os laços de Xinjiang com o país.

Memetimin Memet, 35, por exemplo, recebeu uma pena de dez anos de prisão. Só que, em sua ficha, a acusação nada teve a ver com atos do tipo. "O suspeito aprendeu a prática de culto e das escrituras [islâmicas] por cerca de um mês em 1994; deixou a barba crescer por cerca de três meses, de maio a agosto de 2006".

"Grande parte do que o regime tem tentado fazer é pegar qualquer coisa que as pessoas tenham feito no passado e tomar isso como uma indicação de que elas precisam ser reeducadas ou punidas", explica Adrian Zenz, da Fundação Memorial das Vítimas do Comunismo, think tank com sede nos EUA. "E, muitas vezes, a suposição é a de que toda a família tem problemas, de modo que parentes também são detidos."

Zenz, um antropólogo alemão, é um dos principais nomes que estudam a situação em Xinjiang. Foi ele quem recebeu os milhares de arquivos de uma fonte anônima que não quis ser identificada por temer represálias. Junto a uma equipe, os traduziu e organizou. Parte do material mostra imagens de itens apreendidos pela polícia por serem considerados ilegais. Ali estão tapetes de oração, hijabs —véu islâmico que cobre o cabelo e o pescoço— e versos manuscritos do Alcorão.

Outro documento traz uma avaliação feita pelo ministro da Segurança Pública em junho de 2018, após visitar Xinjiang. Zhao Kezhi diz que a administração local foi bem-sucedida no combate ao que descreve como terrorismo, "a despeito da situação de detenções severamente excessivas em relação à capacidade das prisões locais".

Pesquisadores como Zenz e organizações de direitos humanos projetam que, desde 2017, de 1 milhão a 3 milhões de uigures tenham sido detidos em Xinjiang, tanto em prisões quanto em campos de reeducação. O ministro Kezhi, no mesmo documento, diz que, desde o ano anterior, "mais de 20 mil gangues terroristas perigosas foram destruídas, o que é mais de cinco vezes o total dos últimos dez anos".

Uigures que vivem na Turquia mostram fotos de parentes que dizem estar detidos na China, durante entrevista coletiva sobre o assunto em Istambul - Ozan Kose - 10.mai.22/AFP

Procurada, a embaixada chinesa no Brasil disse que o país já esclareceu, diversas vezes, "as acusações infundadas em relação à chamada 'questão dos direitos humanos' em Xinjiang". Mencionou respostas dadas pelo porta-voz da chancelaria do país, Wang Wenbin, durante entrevista coletiva na terça-feira (24).

Na ocasião, Wenbin disse que o recente vazamento seria mais um caso de difamação de Xinjiang por forças anti-China. "É exatamente o mesmo truque que eles costumavam jogar antes. As mentiras e os rumores que espalham não podem enganar o mundo nem esconder o fato de que Xinjiang goza de paz e estabilidade, sua economia está prosperando e seu povo vive e trabalha em paz."

Zenz vê nas sanções econômicas a Pequim e a autoridades chinesas a forma mais eficaz de fazer com que o regime mude a postura em relação aos uigures, que contam com uma diáspora cada vez maior na Turquia. "Uma imagem fala mais que mil palavras, e a propaganda chinesa costuma dizer 'para crer, venha aqui e veja por si mesmo'. Agora, mesmo não indo até lá, vemos o que está acontecendo."

Outro documento dos Arquivos é uma orientação sobre como os agentes de segurança devem agir em caso de rebeliões. Os guardas são orientados a disparar tiros de advertência se os internos não aceitarem ordens verbais. Caso isso não funcione, eles podem atirar para matar.

Aproximadamente 2% da população chinesa é muçulmana, de acordo com projeções do Pew Research Center. Outros 18,3% são budistas, e 5,2%, cristãos. Cerca de 22% pertencem ao que o centro chama de "religiões tradicionais", aquelas estreitamente associadas a um grupo étnico. Mais de 51,8% dos chineses não teriam nenhuma religião.

A pressão cresce não só na arena econômica, mas também na cobrança de mecanismos de investigação e justiça —não à toa, o vazamento foi publicado na semana em que Bachelet está na China. Dezenas de ONGs internacionais pediam que a alta comissária assumisse postura incisiva em relação ao tema.

"O mandato de Bachelet tem sido marcado pela ausência de diplomacia pública sobre a China; quando se compara isso com as outras crises com as quais ela teve de lidar, como Mianmar e Ucrânia, a diferença na linguagem e na frequência é imensa", afirma o brasileiro Raphael Viana David, diretor do programa para a Ásia do Serviço Internacional de Direitos Humanos (ISHR), baseado em Genebra, na Suíça.

Bachelet negociava uma visita à China desde 2018. Pressionada por ONGs para fazer um monitoramento remoto de Xinjiang diante da demora, ela assim o fez. O documento sobre o processo, relata Viana, estava pronto em setembro passado. Até hoje, porém, o material não foi disponibilizado ao público.

Organizações como a ISHR cobram a divulgação do relatório e querem que a chilena faça com que a oportunidade da recente visita seja o pontapé para processos internacionais de justiça, como investigações de possíveis crimes contra a humanidade ou genocídio cultural.

Após as recentes declarações da alta comissária, a ISHR disse, em nota, que foi usada uma linguagem notadamente leve para uma situação que escalou nos últimos anos: "Bachelet perdeu uma oportunidade única de lançar as bases para um monitoramento substancial da crise de direitos humanos na China. Seu discurso evidenciou sua falta de compreensão dos desafios de direitos humanos do país".

Zenz, entrevistado antes de a chilena dar as declarações neste sábado, escreveu no Twitter que o conteúdo da fala foi pior do que o esperado. "Aquela que talvez seja a pior violação de direitos humanos do nosso tempo foi tratada como questão que deve apenas ser revisada no âmbito doméstico, pelo próprio perpetrador da violência."

Ao final, a expectativa era a criação de mecanismo de monitoramento e investigação do assunto no guarda-chuva da ONU. Algo assim, porém, teria de ser aprovado pela Comissão de Direitos Humanos —ou seja, obter o voto favorável dos países-membros. "Aí entra o desafio, pois a China pressiona várias dessas nações", diz Viana —o Brasil, que tem Pequim como principal parceira comercial, integra o conselho.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.