Descrição de chapéu China América Latina Brics

China sela aproximação com Argentina, mas vê economia como entrave

Xi convida Fernández para encontro do Brics; analistas indicam que crise política em Buenos Aires pode ser novo obstáculo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Buenos Aires

O convite do líder Xi Jinping para que a Argentina esteja presente no encontro do Brics que a China organiza no mês que vem —ainda de modo virtual, em razão das restrições impostas pela pandemia de Covid— reforçou uma aproximação recente do país vizinho com o gigante asiático.

Os passos anteriores incluíram uma visita do presidente Alberto Fernández a Pequim, em fevereiro. No encontro para celebrar os 50 anos de relações diplomáticas entre os países foram firmados vários acordos, como o da entrada de Buenos Aires na chamada Nova Rota da Seda, maior projeto chinês de política externa batizado de Belt and Road (iniciativa Cinturão e Rota).

O memorando assinado fez com que a Argentina se transformasse no 21º país da América Latina e do Caribe, mas a primeira grande economia da região, a compor o grupo —Brasil e México, por exemplo, continuam de fora. Entre os investimentos que a China se comprometeu a fazer pelo acordo estão hidrovias, uma nova usina nuclear e um projeto ligado à exploração de lítio no norte do país.

Alberto Fernández ao lado do líder chinês, Xi Jinping, em visita a Pequim, em fevereiro - Divulgação Presidência Argentina - 6.fev.22/AFP

Mesmo com esses avanços recentes, analistas veem o movimento com cautela. "A aliança entre China e Argentina é estratégica e importante, mas de fevereiro para cá não houve desembolsos de monta em termos de investimento", diz à Folha Sergio Cesarín, coordenador do Centro de Estudos sobre Ásia-Pacífico e Índia na Universidade Nacional de Três de Fevereiro.

Ele destaca ainda o peso que pode ter no cenário diplomático argentino o agravamento dos desentendimentos entre o presidente e sua vice, Cristina Kirchner.

"A política externa tem sido errática, mas Fernández se mostra mais pró-Europa e EUA, enquanto Cristina é mais pró-China e Rússia. Em fevereiro, as diferenças não eram tão grandes, mas hoje os dois se mostram mais afastados, e isso pode se refletir nesse contexto estratégico", diz Patricio Giusto, diretor do Observatório Sino-Argentino e da consultoria Diagnóstico Político.

"A aproximação com China e Rússia e a vontade de ser parte do Brics sempre foram um capricho de Cristina —tanto que acordos com Pequim foram interrompidos na gestão de Mauricio Macri, que apontava para um alinhamento muito claro aos EUA." (O Brasil disse recentemente não ver espaço para o debate sobre o ingresso de Buenos Aires no Brics, pleito reforçado por Fernández na Ásia.)

Segundo o analista, chineses fazem ponderações quanto a investir na Argentina num momento em que poucos atores fazem o mesmo. "Para eles, a adesão de Buenos Aires à Cinturão e Rota tem muito de simbólico na disputa comercial com os EUA."

Outro sinal que leva a China a ter cautela é uma controvérsia recente com um aliado regional de peso. Em sua viagem em fevereiro, anterior à Guerra da Ucrânia, Fernández esteve com Vladimir Putin em Moscou e disse querer que a Argentina fosse "a porta de entrada da Rússia na América Latina".

Depois, o político condenou a ação russa no conflito, alinhando-se à União Europeia e aos EUA, o que fez com que Putin se referisse a Fernández como hipócrita e traidor, segundo a agência de notícias local Sputnik —a contenda gera certo suspense sobre como será o encontro dos dois na reunião do Brics.

Enquanto isso, a afirmação do presidente argentino, ao voltar de Pequim, de que a entrada no Belt and Road significaria investimentos no país de US$ 23 bilhões por ora não se concretizou.

"A Argentina está endividada, tem débitos que vão além do existente com o FMI, e seria pouco provável que a China aceitasse emprestar mais dinheiro num contexto em que o país reestrutura seus compromissos e se mostra incapaz de cumprir prazos", diz Cesarín.

Só para o polo logístico-científico de Ushuaia era previsto um empréstimo de US$ 9 bilhões, quase um quarto da dívida com o Fundo Monetário Internacional que a Argentina acaba de reestruturar, jogando pagamentos para um eventual futuro governo —há eleições presidenciais em 2023.

Independentemente disso, há voluntarismo. Um sinal é o fato de a China hoje se revezar com o Brasil no posto de principal parceiro comercial da Argentina —dependendo da época do ano, Pequim assume o primeiro lugar tradicional do Brasil. "A tendência é irreversível, a China será o maior importador de produtos da Argentina, principalmente de alimentos", diz Giusto.

Em 2021, Pequim comprou US$ 6,3 bilhões em bens argentinos (8% do total das exportações), principalmente soja e derivados e carne bovina, segundo o Indec. "É uma pena que a visão chinesa para importações se restrinja a alimentos. O Chile está à frente nesse sentido para produtos mais refinados —e mesmo no caso de vinhos, devido a um acordo de livre comércio que nos deixa para trás."

A Argentina, por sua vez, compra cerca de 5.000 tipos de produtos chineses, incluindo automóveis, roupas e eletrônicos. Em 2021, esse comércio movimentou US$ 13,5 bilhões, ou 21% do total das importações do país. O intercâmbio entre os dois países quintuplicou entre 2003 e 2020.

Para o analista Eduardo Oviedo, do Conicet (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas), o interesse da China esbarra na questão econômica. "A situação financeira da Argentina não encoraja novos investimentos: é um país cuja dívida externa alcança mais de 80% do PIB e que tem inflação anual de 58%. Chineses, como demais investidores, agem com cautela", diz. "Por ora, essa aproximação mais rende em simbologia para Pequim do que se transforma em investimentos propriamente ditos, porque não há certeza de retorno. Ela faz com que a China se mostre atuante no que antes era o pátio dos EUA."

O movimento começou em 2014, quando Cristina Kirchner, então no posto de presidente, e Xi Jinping assinaram uma declaração conjunta para o estabelecimento da Associação Estratégica Integral entre os dois países. Desde então, passou a haver investimentos grandes da China, como um empréstimo de quase US$ 5 bilhões para financiar hidrelétricas na província de Santa Cruz (reduto eleitoral dos Kirchner) e a renovação da companhia ferroviária Belgrano Cargas.

Para o embaixador da Argentina na China, Sabino Vaca Narvaja, um produto de aprovação recente por parte do Ministério da Agricultura pode servir para vitalizar a relação: a soja do tipo HB4, desenvolvida no país e mais tolerante à seca —o cultivo biotecnológico realizado na Argentina tem passe livre na China.

"Trabalhamos em várias frentes, sendo a primeira o diálogo para coordenar investimentos estratégicos a médio prazo, como a construção da nossa quarta central nuclear. Outros projetos importantes são os gasodutos, um conjunto de represas, a exploração do lítio em Jujuy e ferrovias", afirma o diplomata.

Há, ainda, compromissos geopolíticos, com Buenos Aires apoiando a ideia de uma "China única" —sem reconhecer a independência de Taiwan— e Pequim reconhecendo a luta dos latino-americanos pela requerida soberania das ilhas Malvinas, hoje parte do Reino Unido.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.