Eleição regional no Reino Unido vira referendo pessoal do controverso Boris Johnson

Pleito testa força da liderança do premiê e oferece aos trabalhistas sinais para a disputa geral, em 2023

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São Paulo

Os escândalos de festas clandestinas realizadas durante a pandemia, a recuperação econômica após a crise sanitária, o aumento do custo de vida, a Guerra da Ucrânia, uma espécie de ranço que se instaurou entre parte da população e até o visual de cabelos desgrenhados de Boris Johnson serão alguns dos aspectos que acompanharão os britânicos às urnas nesta quinta-feira (5).

As eleições regionais no Reino Unido vão decidir quem serão os ocupantes dos milhares de assentos em conselhos municipais, distritais e em outras divisões da política local. Mas também serão uma espécie de referendo pessoal sobre a figura do primeiro-ministro, um teste para sua liderança à frente do Partido Conservador e talvez o prenúncio do desafio que a oposição trabalhista enfrentará se sair vitoriosa.

O premiê britânico, Boris Johnson, de gravata, conversa com o deputado conservador Paul Holmes no aeroporto de Southampton
O premiê britânico, Boris Johnson, de gravata, conversa com o deputado conservador Paul Holmes no aeroporto de Southampton - Adrian Dennis/AFP

Em geral, grandes temas internacionais não costumam ter grande influência em pleitos locais. Em circunstâncias normais, pouco importa para o eleitor que vai escolher um novo conselheiro municipal em uma cidadezinha no norte da Inglaterra se Boris vai enviar £ 300 milhões em ajuda militar à Ucrânia.

Mas os desdobramentos do conflito na dinâmica local, como o aumento do custo de vida, são, sim, determinantes na hora de votar. Será ainda o primeiro pleito regional após o brexit e em um momento em que a Covid começa a ficar para trás —e as lideranças locais serão julgadas por sua conduta no período.

Nessa equação entra também a imagem pessoal que os britânicos construíram do premiê —moldada nos últimos meses por uma série de escândalos. O relatório da investigação interna que apurou os eventos irregulares realizados em Downing Street, sede do governo, concluiu, sem mencionar Boris diretamente, que houve "falhas de liderança e de julgamento" por diferentes membros de sua gestão.

O premiê foi multado, tornando-se o primeiro chefe de governo a ser punido por violar a lei durante o exercício do cargo. Também é alvo de investigação que apura se ele mentiu deliberadamente ao Parlamento quando negou a realização das festas clandestinas. "Estou absolutamente enojado com a maneira como ele se comportou", disse John Jones, 75, morador de Newcastle-under-Lyme, à agência de notícias Reuters. "Já cansei de vê-lo agir como um palhaço. Basta olhar para o corte de cabelo e para a maneira como se veste para perceber que não está levando esse trabalho a sério."

Votos como o de Jones, que Boris já perdeu, foram determinantes nos últimos pleitos para consolidar o governo conservador. Se as projeções das pesquisas de intenção de voto se concretizarem, porém, a mudança na paisagem do cenário político britânico pode se tornar um marco da derrocada dos correligionários do premiê e uma nova chance para os opositores do Partido Trabalhista.

"Isso pode tanto fortalecer a oposição quanto criar o pretexto para que os conservadores, de alguma forma, tentem se 'livrar' de Boris antes das próximas eleições [gerais], do próximo teste de força", afirma Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper.

O adeus de Boris, cujo jogo de cintura político até agora o ajudou a se manter no cargo, pode não ocorrer tão facilmente —mas também nunca esteve tão perto. A esperada derrota nas eleições desta quinta pode ser o gatilho para fomentar o voto de desconfiança que há meses assombra o premiê.

Se 54 dos 360 deputados conservadores no Parlamento enviarem a um órgão da legenda um pedido para que sua liderança seja desafiada, dá-se início ao processo que pode desencadear a renúncia.

O precedente já existe. Em 2019, o mau desempenho nas eleições locais foi um presságio para a antecessora de Boris, Theresa May. A conservadora perdeu cerca de 1.300 assentos no pleito em maio daquele ano e, no mês seguinte, viu-se obrigada a renunciar à posição de liderança.

Carolina Pavese, professora de relações internacionais da ESPM, afirma que a eleição não trará grandes surpresas em termos de que partido domina cada região do país. Mas o cenário de longo prazo pode ser alterado e influenciar as eleições gerais, previstas, ainda que sem data definida, para 2023.

"O que vai se tirar agora é uma fotografia da situação política atual, da opinião pública hoje, mas isso vai dar insumo para os partidos trabalharem o que falta em suas imagens e em suas agendas."

Na visão da especialista, Boris agiu de forma semelhante a Joe Biden e conseguiu angariar capital político interno por meio de uma crise externa como a Guerra da Ucrânia. Ambos anunciaram nas últimas semanas pacotes bilionários de ajuda a Kiev. O britânico se tornou o primeiro líder ocidental a discursar ao Parlamento ucraniano desde o início do conflito, e lá fez promessas de que a Ucrânia vai vencer a guerra.

"Se, por um lado, a guerra tem um impacto econômico real negativo para o Reino Unido, por outro tem se apresentado como oportunidade para Boris empregar capital político e reforçar seu papel enquanto liderança para tentar modificar a opinião pública a seu favor", diz Pavese.

Para Consentino, uma derrota dos conservadores nesta quinta será debitada quase totalmente da conta de Boris. Talvez seja esse o receio de alguns candidatos que, embora dividam a mesma legenda com o primeiro-ministro, omitiram seu nome e sua imagem dos materiais de campanha e passaram a se denominar "conservadores locais", marcando distanciamento da agenda nacional do premiê.

"Diz muito que os próprios candidatos conservadores tenham vergonha de se associar a ele e estejam tentando enganar os eleitores", disse Angela Rayner, vice-líder do Partido Trabalhista. "Sem respostas para a crise do custo de vida, eles estão tentando se esconder do histórico de seu próprio governo."

O professor do Insper ressalta, no entanto, que os conservadores que apostam na fritura de Boris com a esperança de que surja um novo nome a tempo das próximas eleições gerais fazem um movimento arriscado. "Rifando seu líder, podem perder eles mesmos a liderança e o controle do governo."

Esta talvez seja a chance que os trabalhistas aguardam desde 2010, quando Gordon Brown deixou Downing Street. O editor de economia do jornal britânico The Guardian descreveu a vantagem dos opositores de Boris com uma metáfora esportiva. "No futebol, seria o equivalente a um atacante a dois metros do gol com um pé na bola e os defensores longe da vista. Se o Partido Trabalhista não estufar a rede agora, então há realmente apenas uma pergunta a fazer: quando na Terra é provável que o faça?"

Assim, o ambiente político, ainda que favorável aos trabalhistas, poderia ser, na prática, um tiro saído pela culatra. Com o Reino Unido fora da União Europeia, em recuperação pós-coronavírus e envolvido na Guerra da Ucrânia, não se sabe como o partido que foi oposição nos últimos 12 anos se comportaria no governo.

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