'Timor Leste vive em paz, mas não em tranquilidade', diz José Ramos-Horta

Recém-empossado, presidente timorense diz que se candidatou porque sentia que país estava sem 'um governo forte'

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Bárbara Reis
Lisboa | Público

José Ramos-Horta tomou posse como sétimo presidente do Timor Leste nesta quinta-feira (19), em Tasitolu, nos arredores da capital Díli, horas antes de o país celebrar 20 anos de independência.

O político foi líder da resistência diplomática contra a ocupação indonésia no Timor, venceu o prêmio Nobel da Paz, foi ministro, primeiro-ministro e presidente. Agora, aos 72 anos, e após uma década sem cargos no governo, foi eleito chefe de Estado de novo, em eleições realizadas no mês passado, com 62% dos votos.

Ele se candidatou porque sentia que o país estava sem "um governo forte", quer dar "tranquilidade" aos timorenses e para finalizar o processo de adesão à Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático).

O jurista José Ramos-Horta gesticula durante entrevista em Díli, capital do Timor Leste
O jurista José Ramos-Horta gesticula durante entrevista em Díli, capital do Timor Leste - Valentino Dariel Sousa - 21.abr.22/AFP

Nesses 20 anos, o Timor "poderia ter feito melhor", mas Ramos-Horta não está "totalmente desapontado". "Me orgulho de ter um país democrático." A tragédia de Mianmar, diz, "abriu os olhos" a quem tinha reservas em relação ao Timor. Afinal, o Timor Leste "é mais estável, pacífico e previsível que outros países de pleno direito da Asean".

Ramos-Horta defende que na diplomacia, em certos casos, o princípio tem de prevalecer sobre o pragmatismo e que, antes da invasão russa, "deveria ter havido um diálogo para a Ucrânia ter um estatuto de neutralidade". "Às vezes, o estatuto de neutralidade nos beneficia. Agora não sei — ​talvez seja tarde demais."

Nestes 20 anos de independência, Xanana Gusmão foi presidente e primeiro-ministro, Taur Matan Ruak foi presidente e primeiro-ministro, Francisco [Guterres] Lú Olo foi presidente até esta semana e também presidente do Parlamento. No seu caso, foi ministro dos Negócios Estrangeiros, primeiro-ministro e presidente. A falta de renovação é um problema da política timorense? Factualmente, nada do que diz está errado. Mas, desde 2001, quase ninguém da geração de 1975 fez parte direta dos governos e do Parlamento. No primeiro governo constitucional, de 2002, em 40 membros, só havia cinco, no máximo, de quem se pode dizer que eram da "geração de 1975". Ao longo destes anos, tivemos como governantes pessoas como Fernando "La Sama" de Araújo, Arsénio Bano, Ana Pessoa, Rui Araújo, nenhum da "geração de 75".

Jornalistas e críticos falam de "renovação". Infelizmente, quando chegamos a 2002, a esmagadora maioria daquela geração tinha morrido. A maioria morreu heroicamente na luta. Dessa geração, praticamente só Xanana sobreviveu. Eu só servi dez anos, entre 2002 e 2006 e depois como presidente, entre 2007 e 2012.

Além disso, Xanana, como primeiro-ministro, cedeu duas vezes a pasta. Primeiro, de 2015 a 2017, a Rui Araújo, e, em 2018, quando era de novo líder da coligação, cedeu a pasta a Taur Matan Ruak. E estamos falando de um país com 20 anos. A maior parte da nossa vida adulta foi passada na luta: luta armada, luta política e luta diplomática. As pessoas falam como se estivéssemos no governo há 40 anos.

É uma crítica injusta? É falaciosa. A maioria dos governantes do país —governo e deputados— é da geração pós-75. Basta ficar uma hora no Parlamento timorense observando e vai perceber que não se vê nenhuma cara de 1975.

Por que quis ser presidente outra vez? Saí em 2012. Em 2017, não quis concorrer, embora tenha tido muita pressão. Em 2022, candidatei-me em parte por causa desta crise, que começou em 2017, por causa dos atos do presidente Lu Olo, que têm excedido amplamente os poderes presidenciais —o presidente não deu posse a um terço dos membros propostos para o governo e não deu posse a uma nova coligação proposta por Xanana Gusmão, em 2020, quando Taur Matan Ruak se demitiu como primeiro-ministro, a seguir à proposta de Orçamento do Estado.

Para evitar eleições antecipadas, o presidente Xanana tentou uma nova coligação e conseguiu formá-la, mas Lu Olo não quis dar posse e fez um novo arranjo dominado pela Fretilin. Perante esses fatos, houve uma grande movimentação da sociedade civil de todo o país que me empurrou a candidatar-me. Também me candidatei porque estamos na fase final do processo da nossa adesão à Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático).

A nova geração está mais preparada do que a de 1975? Sim. Há muitos políticos com 40 e 50 anos que já têm 20 anos de experiência no Parlamento, na diplomacia, nos partidos políticos. São escolas de preparação. É assim desde 2001. Hoje temos centenas de pessoas formadas. Mas, em democracia, o interessado tem de trabalhar num partido —pode ser independente como eu—, mas regra geral o interessado tem de trabalhar num partido e chamar a atenção pelas suas capacidades intelectuais e políticas.

Os partidos mais fortes são a Fretilin, só o nome é quase um mito. Mas a Fretilin enfrenta a realidade de ver que hoje só o nome Fretilin não basta. É preciso uma liderança forte, credível, dialogante. Hoje o CNRT (Congresso Nacional da Reconstrução Timorense, liderado por Xanana Gusmão) já tem, e não só pelo carisma e autoridade de Xanana, dezenas de altos quadros qualificados, com experiência de governo, pessoas com mestrados e doutorados.

Mais do que a Fretilin? Em termos de quadros acadêmicos, o CNRT tem provavelmente mais. A Fretilin continua a ter quadros bons, a começar por Mari Alkatiri, que é uma figura forte e dominante. Devo dizer que, independentemente das críticas que se façam, poucas vezes vi alguém com mais garra e mais intelecto do que ele a segurar um partido.

Mas são 20 anos em situações difíceis e há uma erosão. Hoje, Alkatiri tem concorrentes com credibilidade, como o general Lere [Anan Timur] —que é quase da minha idade— e Rui Araújo, que é 15 anos mais novo do que eu. Esses são os candidatos fortes à liderança da Fretilin.

O que vai fazer de diferente desta vez como presidente? Continuar o que comecei, em diálogo com os líderes, a sociedade civil e a Igreja Católica, para continuar a estabilizar a situação política, tranquilizar a nossa sociedade. Ao mesmo tempo, dialogar com o governo, o Parlamento, a sociedade civil e a comunidade internacional, para dinamizarmos a economia de uma forma pró-ativa, tendo em conta a adesão em breve do Timor Leste à Asean. Vamos fazer parte de uma região econômica de 700 milhões de pessoas e quatro trilhões de dólares de PIB.

O Timor Leste vai ser um destino interessante para investidores da Europa, dos EUA. Enquanto país isolado, somos 1,3 milhão de pessoas. Fazendo parte da Asean, passamos a fazer parte de uma grande economia regional, que tem importantes acordos de comércio livre. Essa é uma das razões pelas quais me candidatei: preparar melhor a adesão à Asean.

O que bloqueia a entrada de Timor na Asean? Não há bloqueio nenhum.

A entrada na Asean está fechada? A adesão está fechada, há consenso há vários anos. Um jornalista leu isto aqui ou acolá, algum acadêmico ouviu uma conversa em Cingapura dizendo que Cingapura não apoia a adesão de Timor à Asean e os outros jornalistas repetem. Mas eu converso com os líderes da região. Cingapura não estava contra. Cingapura, muito pragmática, estava preocupada com os recursos humanos, por causa da quantidade de reuniões.

Em retrospectiva, eu digo: ainda bem que Cingapura chamou a atenção e pôs muito a questão dos recursos humanos e da preparação. Quando eu fiz o pedido formal de adesão, na cúpula de Bali, em 2011, foi criado um grupo, o Timor-Leste Asean Working Group, e houve várias missões a Timor ao longo destes anos, reuniões com 50 e 70 pessoas. Timor continua com dificuldades na área dos recursos humanos e na área econômica, mas não há qualquer reserva de qualquer país da Asean sobre a nossa adesão. A adesão está para breve, será dentro de um ano ou dois.

É um consenso de bastidores ou há um acordo oficial? Há um consenso, e o consenso é oficial. Foi identificado que Timor-Leste não estava preparado e, por isso, ao longo destes anos, desenharam-se programas especiais de apoio, nos quais o Asian Development Bank, a União Europeia, o Japão etc. têm trabalhado conosco e com o secretariado da Asean. A adesão não é um processo puramente formal, burocrático nem é apenas uma decisão política. A Asean tem em média mil reuniões por ano. Mil.

Mil? Sim, mil. Desde reuniões de grupos de trabalho até cimeiras de chefes de Estado, passando por reuniões ministeriais. É semelhante à UE. Esse é o grande desafio para Timor Leste.

Timor é um pequeno país com pouca capacidade de produção. Como é que vai usar o grande mercado da Asean? Timor aderiu à Organização Mundial do Comércio, cujas regras são as da Asean. Ainda há problemas para serem resolvidos, como os títulos de propriedade, a resolução com celeridade e credibilidade de disputas contratuais e a proteção de investimentos. É nesta parte que Timor ainda está por corresponder às exigências da Asean. Mas estamos na reta final.

Eu encorajaria a indústria farmacêutica portuguesa, os têxteis, o calçado, as conservas, a manutenção naval e outros a investirem em Timor Leste. Para mim, e para qualquer governante timorense, Portugal ocupa sempre um lugar de destaque no nosso dia a dia, pela história, amizade, solidariedade e interesses nacionais. Portugal é um amigo seguro de Timor Leste, amigo no contexto da Europa.

Temos de promover ligações aéreas mais regulares e subsidiadas entre Lisboa e Díli, passando por Macau. Esses voos têm de ser fortemente subsidiados pelas três partes: Timor Leste, Macau e Portugal. Isto vai permitir maior mobilidade de pessoas e de carga aérea.

Em 2000, uma das primeiras decisões da ONU, na administração transitória de Timor, foi dizer que a atribuição dos títulos de propriedade competia aos timorenses e não poderia ser decidida pela ONU. É uma questão complexa e 20 anos depois não está resolvida. Em todos os países do Terceiro Mundo é sempre assim, é sempre muito sensível, sobretudo em países que tiveram conflitos: as pessoas que eram donas de propriedades tiveram de fugir, abandonaram as propriedades, as propriedades foram vendidas... Enfim, é uma dor de cabeça. Tem havido soluções, caso a caso, por meio dos tribunais, da apresentação de documentos, do regime de compensação, mas está longe de ser pacífico.

O que espera que melhore com a adesão à Asean? Fazemos parte de uma grande economia, 700 milhões de pessoas, quatro trilhões de dólares, não temos problemas fronteiriços com ninguém, temos relações amistosas com o nosso vizinho mais próximo, com o qual partilhamos fronteira terrestre e marítima: a Indonésia. A tragédia de Mianmar abriu os olhos: quem tinha reservas em relação a Timor percebeu que afinal Timor Leste é mais estável, pacífico e previsível do que outros países de pleno direito da Asean.

Ao contrário de outros países da Asean, o Timor Leste não tem problemas étnicos nem religiosos, não temos violência política, não temos insurreições armadas, como há em Mianmar, nas Filipinas, no sul da Tailândia. A Indonésia ainda enfrenta uma insurreição com a Papua.

Do ponto de vista religioso, Timor é totalmente pacífico. Aliás, Timor, ironicamente, é dos países mais homogêneos da região: 98% são católicos e as minorias étnicas são muito, muito pequenas. Ao contrário do mosaico de Indonésia, Filipinas, Mianmar. E, no Sudeste Asiático, Timor Leste é o primeiro classificado nos rankings de democracia e liberdade de imprensa feitos pela Economist e pela Freedom House,

Qual tem sido o papel da Indonésia no processo da Asean? Tem ajudado ou tem sido neutro? Em um primeiro momento, a Indonésia foi o país que mais aprovou a nossa adesão à Asean. Mas também a Malásia, as Filipinas, o Camboja e o Brunei.

E a China? Temos ótimas relações com a China, mas Timor Leste tem sido cauteloso e prudente em navegar o oceano das rivalidades e tensões regionais e globais. Temos ótimas relações com os EUA, a União Europeia, o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália e a China. Com a Indonésia, as relações são excepcionalmente boas. Os passaportes não carecem de visto para entrar nos dois países. Milhares de cidadãos indonésios vivem em Timor Leste —e não são pessoas que estavam cá antes de 1999.

O que fazem esses indonésios? Normalmente, comércio: têm lojas, restaurantes, vendem equipamentos, tratores, motos... As motos são uma peste, uma peste muito comum na Ásia, uma peste!

Na sua fotografia de WhatsApp está montado numa moto. Sim, mas é uma Vespa original italiana.

Anda de moto em Díli? Sim, ao fim de semana e de manhã cedo, às 7h, quando não há trânsito.

Para ir trabalhar ou passear? Para passear. Para trabalhar, vou no meu Moke dos anos 1960, às vezes vou no meu Willys, de 1948, um jipe militar da 2ª Guerra Mundial. Outras vezes vou no "carocha" Volkswagen com motor brasileiro. São carros que comprei na Austrália e aqui em Timor, com peças que arranjo na Indonésia e noutros lugares.

No livro "Crônica de Uma Travessia" (D. Quixote, 1997), o escritor Luís Cardoso o descreve conduzindo um conversível em Díli, nos anos 1960, na avenida dos Coqueiros, com mulheres de cabelos longos ao vento. Sim, no tempo português eu já tinha um Moke.

Conversível? Não é um conversível automático, tem um toldo que temos de desabotoar. É um carro barato. O que eu tenho agora comprei por US$ 1.000.

Na região, para que país olha como modelo? Estudo as experiências de sucesso e as falhas de diferentes países, para nós são experiências de aprendizagem. Olho para alguns aspectos da Indonésia, pois não se pode olhar para a Indonésia como um todo, é um país demasiado grande. É preciso destrinchar: como é que a Indonésia está desenvolvendo o Timor ocidental? Como é que a Indonésia está desenvolvendo Bali? É turismo, claro, mas como?

Também vejo Cingapura, que não tem recursos naturais nem água, mas é um modelo e um motivo de imaginação em todo o mundo. O que tem Cingapura? Serviços, um sistema bancário, facilidade de investimento. Cingapura é um grande armazém mundial, produz pouco. É um país de confiança para os investidores. Não há um modelo único. Timor pode olhar para muitos lugares. Dubai é outro modelo possível. Todos eles o que revelam? Recursos humanos de alto nível.

O jurista José Ramos-Horta vota nas eleições presidenciais do Timor Leste, em Díli
O jurista José Ramos-Horta vota nas eleições presidenciais do Timor Leste, em Díli - Valentino Dariel Sousa - 19.abr.22/AFP

Falou em "tranquilizar a sociedade". Que tranquilidade falta em Timor? Desde 2017, o país vive em certa suspensão, não há um governo forte e estável, tem havido constantes problemas na vida política, com muita retórica virulenta e ofensiva. Nunca houve violência política, mas o nosso povo é muito sensível. Quem se lembra da violência do passado fica muito incomodado. O país vive em paz, mas não vive em tranquilidade. Há paz porque há ausência de conflito armado, mas o país vive intranquilo: sentem-se os medos, os anseios, a ansiedade. Eu quero que o povo viva em total tranquilidade.

Mal o resultado oficial das eleições presidenciais saiu, fui falar com o presidente Francisco Lu Olo, que me recebeu muito bem, falei com Mari Alkatiri, falei com Taur Matan Ruak, falei com o presidente do Parlamento. A reação de milhares de pessoas que comentaram foi de felicitar-me, porque foi a primeira vez que viram um chefe de Estado fazer isso, descer e ir falar com todos os líderes.

Sou uma pessoa de diálogo e sem grandes formalismos. Fui eu que fui ter com eles; fui eu que fui ao Parlamento; fui eu que fui ao escritório de Alkatiri, já duas vezes; fui eu que fui ao palácio do governo falar com o primeiro-ministro. Estou em frequente sintonia com o "maun bot" [grande irmão, em tétum] Xanana Gusmão.

Na CPLP, Timor Leste distinguiu-se ao votar na ONU contra a invasão da Ucrânia, juntamente com Portugal. Ficou decepcionado com as abstenções dos outros membros da CPLP? Só posso falar por mim. E não fiz parte dessa decisão. Mas qualquer ato de agressão ou uso de força para resolver problemas fronteiriços e disputas internacionais entre países é totalmente inaceitável: viola a carta das Nações Unidas e o direito internacional. Aí não pode haver qualquer ambiguidade.

Mas a questão da Rússia e da Ucrânia revelou fracasso da liderança global das grandes potências, que não entenderam a extrema sensibilidade da Rússia pós-Guerra Fria e dos seus receios de segurança. O problema não vem de agora. Vem desde a implosão da URSS, e, no momento em que Putin assumiu o poder, era de prever que a questão das fronteiras e da segurança da Rússia e o seu papel na Europa e no mundo teriam de ser bem equacionados.

Mas isto é uma questão à parte, que não pode obscurecer ou minimizar de forma alguma a extrema gravidade da decisão de Putin de usar a força para invadir a Ucrânia, com consequências humanitárias catastróficas para o mundo.

Voltando ao voto da CPLP, como explica esta diferença tão marcante dos seus membros? A CPLP não é uma organização regional. Cada um de nós está nas regiões respectivas e cada um de nós tenta encontrar consensos nas suas próprias regiões. Portugal é membro da União Europeia e da Otan e nenhum de nós é membro da União Europeia e da Otan. Os membros africanos da CPLP pertencem cada um à sua região. Pertencem à União Africana, mas também a sub-regiões. Eles equacionam e tentam a concertação de posições a nível da União Africana e das congregações sub-regionais a que pertencem. Essa é a realidade da CPLP.

Quando fui ministro dos Negócios Estrangeiros do Timor Leste, em 2002, sempre dei como orientação: vamos sempre alinhar as nossas posições com as posições da Asean. Às vezes, sobretudo em relação a Mianmar ou ao Mar da China, não há consenso a nível da Asean.

Nessa altura, Timor Leste tenta alinhar a sua posição com a Indonésia, que tem uma diplomacia extremamente disciplinada e prudente. Mas há questões fundamentais em que Timor Leste alinha com a União Europeia: não temos pena de morte, somos contra a tortura. Nos direitos humanos, Timor Leste vota com a União Europeia e com a Austrália.

É um retrato de uma diplomacia particular. É uma diplomacia de princípios e de pragmatismo. Há um equilíbrio entre princípios e pragmatismo. Às vezes, o princípio tem de prevalecer sobre o pragmatismo. Não nos temos dado mal com isto.

Portugal não tem pontos de entrada na nova geração timorense, que cresceu nos anos de ocupação indonésia. Como vê a relação com Portugal daqui a 20 anos, quando em Timor estiverem no poder pessoas para quem Portugal não é referência? O mesmo se passa com todas as ex-colônias portuguesas, incluindo o Brasil. Ninguém consegue apagar séculos de história. Timor Leste e Portugal terão sempre uma relação especial, privilegiada. Ninguém é "porta de entrada". A história é a ligação imutável. As relações desenvolvidas nos últimos 20 anos, e que continuarão nos próximos anos, consolidam essa relação especial.

Foi Nobel da Paz em 1996 e mediou conflitos desde então: na guerra na Ucrânia, o que é que não está a ser feito e que ainda pode ser feito para tentar acabar com a guerra? Não sei o que não está a ser feito e não quero ter essa veleidade, é uma situação extremamente complexa. Mas uma das grandes preocupações da Rússia foi sempre a expansão da Otan, cada vez mais junto às suas fronteiras. A linha vermelha para a Rússia foi a potencial adesão da Ucrânia à Otan, imaginar a base naval da Crimeia a passar para a zona estratégica da Otan. Daí que o primeiro ato de Putin foi a invasão e ocupação da Crimeia. Aí foi o grande sinal, o grande aviso do que podia estar para vir.

Compreendo perfeitamente o sentimento dos povos que fizeram parte do Bloco de Leste. Tendo vivido 60 anos sob domínio soviético totalitário, de humilhação e medo, eles não têm a mais pequena grata recordação daquela época, os seus sentimentos em relação à Rússia não são os sentimentos de outros que vivem longe. E por isso procuram instintivamente a proteção de segurança da Otan e veem como solução para a questão de segurança deles a adesão à Otan. Mas vemos que ao longo de 70 anos países como a Finlândia e a Suécia não aderiram à Otan e nunca tiveram quaisquer problemas com a Rússia.

Esta modalidade podia ter sido pensada para a Ucrânia. Os líderes ucranianos deviam ter pensado nisso e a Otan devia ter pensado nisso. Devia ter havido um diálogo para a Ucrânia ter um estatuto de neutralidade, um país aberto ao mundo, sem a complexidade, a delicadeza e os perigos de estar ligado a um dos dois maiores blocos militares. Quem viria a se beneficiar com a neutralidade? A Ucrânia. A Ucrânia seria uma Suíça cem vezes maior do que a Suíça: seria um grande celeiro mundial, um grande centro financeiro, de tecnologia, medicina, de tudo.

Às vezes o estatuto de neutralidade nos beneficia. Agora, não sei, talvez seja tarde demais. Quando a nossa reação instintiva é alinhar com um bloco militar, isso fecha as portas às outras possibilidades. Agora a questão é: como recuar?

O secretário-geral da ONU, António Guterres, podia ter feito mais na prevenção, podia ter ido a Moscou e a Kiev mais cedo? Não. Essas são críticas simplistas. A fragilidade da ONU começou muito antes de António Guterres ter sido eleito e agravou-se com Donald Trump. É uma missão impossível para o secretário-geral. Quando os próprios membros permanentes do Conselho de Segurança, que têm maiores responsabilidades do que o secretário-geral, não conseguem chegar a um acordo para resolver a tragédia da Síria, imagine o que fizeram.

À exceção da China, que esteve ausente do teatro da Síria, todos os outros membros —EUA, Rússia, França, Reino Unido— estiveram envolvidos na Síria, alguns diretamente. As próprias superpotências e membros permanentes do Conselho de Segurança.

Era necessário esperar por milagres por parte do secretário-geral da ONU. É totalmente injusto dizer que Guterres "podia ter ido mais cedo". Veja: o próprio papa está à espera para ir a Moscou e Putin não responde. Não é o secretário-geral que decide: "Quero ir a Moscou." Ele faz sondagens e vê se há condições para ir —isto é, se ele vai e há algum progresso. É como em Mianmar, menos complexo do que a Ucrânia, mas onde também nenhuma das grandes potências, incluindo a Asean, está a conseguir reverter para o status quo que havia antes.

Há uns anos, falava-se de uma campanha de bastidores para o posicionar como candidato a secretário-geral da ONU. Ainda vê isso como realista ou o comboio já passou? Já passou. Isso foi há anos. Creio que nunca foi uma possibilidade séria. Conversei com muitas pessoas, incluindo altas entidades americanas, mas nunca acreditei na hipótese. Uma coisa é conversar academicamente, mas nunca pensei nisso como opção séria.

Na altura da independência, há 20 anos, muitos políticos e diplomatas diziam que Timor podia ser um novo "tigre da Ásia" —tem uma população pequena, tem petróleo, é pobre sem a dimensão do Congo ou da Nigéria—, os problemas são pequenos problemas —e há paz. Mas Timor continua a ser um país pobre com índices de país pobre. Foi assim que imaginou Timor 20 anos após a independência? O país só tem 20 anos de independência. Não se esqueça do que viu em Timor em 2000. Um país arrasado, incinerado. Falo com fatos. Em 2002, a esperança de vida dos timorenses era de menos de 60 anos. Havia 20 médicos timorenses em todo o país. Havia um único doutorado. Hoje, a expectativa de vida é de 70 anos. Temos mais de mil médicos. Em cada aglomerado populacional do interior há um médico e um ou dois enfermeiros. Não havia energia elétrica fora de Díli, hoje 80% do país tem energia elétrica. Temos dezenas de pessoas com doutorados feitos em Timor, na Indonésia, em Portugal, no Brasil e nos EUA. Temos centenas de mestrados feitos na Austrália, nos EUA, na Tailândia... Díli hoje é vibrante. Antigamente, às 20h estava tudo fechado. Hoje, até as 23h, meia-noite, as lojas estão abertas, e as ruas estão animadas com pessoas. Temos um fundo soberano com US$ 18 bilhões.

Compare com os números na África: a esperança de vida timorense é mais alta do que a de Moçambique, de Angola, da Guiné-Bissau, da Nigéria e de muitos outros países africanos a sul do Saara. Falo desses países porque têm independência há 50, 60 anos. Quando vejo pessoas que escrevem à toa e dizem que, "20 anos depois, Timor não tem nada", ou em 2000 não estiveram aqui ou estiveram mas nunca mais voltaram e não acompanharam a evolução.

Timor tem independência há 20 anos. Podia ter sido melhor, mas o país evoluiu muito. Hoje, vai-se a Baucau em uma hora e 45 minutos. Antigamente, eram quatro. Há dezenas de hotéis. O Hilton vai abrir as portas dentro de meses. Temos um novo projeto de Cingapura, o Pelican Paradise, um investimento de US$ 800 milhões. Em breve, vamos assinar um acordo com a Austrália para um cabo submarino de telecomunicações, com o qual Timor passa a ter internet igual a Cingapura e à Austrália.

O que podia ter sido melhor? A luta contra a extrema pobreza. Ainda há muita pobreza e subnutrição. A subnutrição infantil é totalmente inaceitável. Há falhas, mas nem tudo é falha. Até na língua portuguesa. Há pessoas que dizem: ninguém fala português em Timor. E eu digo: em 1975, no último ano da colonização portuguesa, menos de 10% da população falava português. Em 2002, era menos de 1%. Hoje, mais de 30% falam ou compreendem português.

A expectativa do "novo tigre da Ásia" foi irrealista? Eu sempre fui realista. Sobre o que conseguimos até hoje não me considero totalmente desapontado. Orgulho-me de ter um país democrático, com ausência de conflito armado, um país inclusivo, não há discriminação ou exclusão de espécie alguma. Em 2002, havia 2.000 estudantes universitários, hoje temos 60 mil, temos uma universidade pública nacional e 16 universidades e institutos superiores privados. Isto são progressos. Também eliminamos a malária. Já não há malária em Timor-Leste.

Voltemos ao princípio: está na política desde os 25 anos, quando, no dia 7 de dezembro de 1975, ao fim da tarde, como ministro dos Negócios Estrangeiros no governo autoproclamado de Timor Leste, a invasão indonésia o apanhou a aterrar em Lisboa. Hoje, quando lhe pedem para passar uma mensagem às gerações futuras, o que diz? Nunca desistir, nunca desanimar, estuda, estuda e estuda. Focar os objetivos, não dispersar energias no que é secundário. Povos pequenos só vencem pela inteligência, pela educação. Cito sempre o exemplo do povo judeu: perseguido, humilhado, a quem foi negada terra e pátria. Sobreviveram e venceram pela inteligência. Melhores dias, melhores anos virão.

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