Ucrânia corta gás russo para a Europa pela primeira vez na guerra

Kiev tenta pressionar mais o Ocidente; Rússia já prepara anexação do sul do país

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São Paulo

A Ucrânia restringiu pela primeira vez desde que foi invadida pela Rússia, há 77 dias, o fluxo de gás natural que o país de Vladimir Putin vende para a Europa e passa por dutos em seu território.

A medida pegou de surpresa analistas ocidentais, que buscam amplificar ao máximo notícias que pareçam favoráveis ao governo de Kiev em sua luta contra os russos, como uma ofensiva no nordeste do país que recapturou algumas vilas nesta quarta (11).

Ruína da siderúrgica de Azovstal, onde um bolsão de resistência ucraniana sofre ataque russo em Mariupol
Ruína da siderúrgica de Azovstal, onde um bolsão de resistência ucraniana sofre ataque russo em Mariupol - Alexander Ermotchenko/Reuters

O corte tem dois significados básicos: primeiro, que o presidente Volodimir Zelenski quer pressionar ainda mais os membros da UE (União Europeia) reticentes a suspender a compra de gás e petróleo russos, que respondem por cerca de 40% das demandas energéticas do bloco. A UE tem discutido tais cortes e já pediu o fim da importação de petróleo e derivados, mas há resistência, particularmente da Hungria do aliado de Putin Viktor Orbán.

O corte parcial do gás foi feito no ponto de trânsito Sokhranovka, da Gazprom, a gigante estatal russa do setor. A operadora ucraniana TSO disse que não havia segurança naquele ramal por passar pelas áreas rebeldes russas de Lugansk, embora o fluxo tenha sido constante desde o começo da guerra. Ela sugeriu o desvio do fluxo para o ramal que sai da cidade russa de Sudja, mais ao norte.

Com a medida, houve uma queda de 25% do envio de gás para a Europa, o que fez o preço do produto flutuar um pouco. Mas terá impactos mais severos se continuar —as outras rotas de hidrocarbonetos passam pela Belarus e sob o mar Báltico, pelo gasoduto Nord Stream 1, que liga a Rússia à Alemanha.

O segundo ramal do Nord Stream, inaugurado no ano passado, nunca foi usado devido às tensões crescentes entre Rússia e Ucrânia e, depois, à guerra. Ele é considerado o maior erro estratégico dos anos de Angela Merkel no poder na Alemanha, por amarrar o futuro energético da maior economia europeia a um aliado inconfiável.

Moscou diz tratar do assunto profissionalmente, e que vai manter sua venda de hidrocarbonetos em contrato, tendo apenas obrigado os países a pagar em rublo para valorizar sua moeda na crise —só que já cortou o fluxo para Polônia e Bulgária, adversárias que se recusaram a fazer isso. As sanções duras a que os russos foram submetidos não impedem que cerca de € 1 bilhão (R$ 5,4 bilhões) sejam pagos diariamente ao Kremlin em troca dos produtos pelos europeus.

Zelenski já disse mais de uma vez que o Ocidente precisa parar de bancar o esforço de guerra russo de forma indireta, enquanto recebeu a promessa de US$ 40 bilhões (R$ 200 bilhões) em ajuda militar e econômica só dos Estados Unidos.

Dessa forma, a medida pode ser apenas um alerta ou um sinal de desespero por parte de Kiev. A ofensiva russa no leste do país, visando abocanhar os talvez 20% restantes da região russófona do Donbass e o sul do país, tem avançado com dificuldade —mas avançado.

Os ucranianos divulgaram com grande estardalhaço nesta quarta terem tomado vilarejos em torno de Kharkiv, segunda maior cidade do país, a noroeste do Donbass. Só que o movimento não interfere na ação russa que visa encurralar o grosso das forças de Kiev no centro da região remanescente sob domínio da Ucrânia.

Se as forças de Vladimir Putin terão energia e recursos humanos para a empreitada, isso é tema de debate até na Rússia. O constante fluxo de armas ocidentais mais adequadas para esse tipo de combate, em oposição à movimentação de infantaria leve e bem armada contra colunas fixas de blindados russos da primeira etapa do conflito, também pode ter seu peso.

Isso se reflete na retórica de Zelenski, que celebrou os avanços em um vídeo, mas disse que "nós não devemos criar uma pressão moral excessiva [sobre a tropa], em que vitórias são esperadas todas as semanas ou até todos os dias".

Os russos parecem agir de acordo com um calendário próprio, que é elusivo. Nesta quarta, por exemplo, um dos interventores apontados por Moscou para a região de Kherson, tomada dos ucranianos no sul do país, anunciou que pretende fazer um pedido formal de anexação ao Kremlin.

Casa para 1 milhão de pessoas antes da guerra, Kherson foi um dos primeiros alvos de Putin. Forças russas oriundas da Crimeia, anexada em 2014 e imediatamente ao sul da província, fizeram da capital homônima a primeira cidade importante ocupada por Moscou na invasão.

Até o fim do ano, disse o chefe-adjunto da administração civil-militar Kirill Stemousov, a região será parte da Federação Russa. Isso ocorrerá provavelmente com a realização de um plebiscito. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, deu a senha ao dizer que, se "houver base legal", a anexação ocorrerá.

Isso aconteceu na Crimeia, com a diferença de que a península é historicamente uma área russa, com a maioria de seus habitantes se considerando russos étnicos. Kherson é mais diversa, e o distante censo de 2001 dizia que 14% de sua população era russófona. Outras estimativas falam em 50%.

Os protestos de moradores da capital ao longo da ocupação até aqui, contudo, mostram que o processo de integração estará longe de ser simples. Mas está em curso: o rublo já foi adotado como moeda oficial e, a exemplo do que acontece na província vizinha de Zaporíjia, até as placas de trânsito já estão em russo.

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