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Vazamento de rascunho indica que Suprema Corte dos EUA derrubará direito ao aborto

Site Politico obtém documento de fevereiro; decisão final sobre o tema ainda não está tomada

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Washington | Reuters

Documento que seria um rascunho interno da Suprema Corte dos EUA indica que o órgão mudará seu entendimento sobre o aborto no país, revertendo o direito garantido pela decisão Roe vs. Wade, de 1973.

O texto, assinado pelo juiz conservador Samuel Alito com data de 10 de fevereiro, teria circulado pelo tribunal e foi divulgado nesta segunda (2) pelo site Politico. A autenticidade do material foi confirmada nesta terça —ao fazê-lo, o presidente da corte, John Roberts, anunciou a abertura de uma investigação para apurar o vazamento, classificando o episódio de "flagrante quebra de confiança".

A minuta de Alito, como destacou o Politico, configura "repúdio total e inflexível" a Roe vs. Wade, decisão que garantiu proteção constitucional ao direito ao aborto, e a outro julgamento, de 1992 (Planned Parenthood vs. Casey), que a ratificou.

Ativistas que defendem o direito ao aborto e grupos antiaborto protestam em frente ao prédio da Suprema Corte, em Washington, após minuta ser divulgada pela imprensa - Kevin Dietsch/Getty Images - 3.mai.22/AFP

Segundo o site, outros quatro juízes conservadores —Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett— teriam endossado a posição de Alito, indicado pelo ex-presidente George W. Bush para a mais alta corte do país em 2006. Os magistrados da ala progressista —Stephen G. Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan—, que devem formar dissidência, estariam atuando para tentar convencer colegas a mudar de posição. Não está claro como Jonh Roberts, hoje mais moderado, planeja votar.

Em geral na Suprema Corte americana, após uma argumentação oral e a votação inicial entre os ministros, um deles recebe a opinião majoritária e elabora uma minuta, que em seguida é distribuída aos demais. Este é o documento divulgado pelo Politico nesta segunda. Entre essa votação inicial e a decisão final, porém, a posição de cada juiz pode mudar. Uma decisão só é definitiva quando publicada pelo tribunal.

O vazamento da minuta da opinião majoritária de um caso ainda sem julgamento é considerado algo sem precedentes na história moderna da mais alta corte do país, ainda que haja um histórico de episódios pontuais. A Suprema Corte debate uma legislação aprovada no Mississippi que impede o aborto após 15 semanas de gestação. Dos seis magistrados conservadores, quatro já haviam indicado em argumentações orais numa reunião sobre o caso que votariam a favor do dispositivo —abrindo caminho para a mudança de entendimento e a adoção de regras similares em mais estados.

Das 98 páginas do documento vazado nesta segunda, 31 são de um apêndice listando leis estaduais aprovadas para criminalizar o aborto nos últimos anos. Alito diz, a certa altura, que "há uma tradição ininterrupta de proibir o aborto sob pena de punição criminal desde os primeiros dias da lei em vigor".​

Em trechos do material, o juiz afirma que a decisão Roe vs. Wade conflita com a Constituição americana e retira das mãos daqueles que deveriam decidir sobre o aborto —os governantes eleitos— esse poder.

"[O caso de] Roe estava flagrantemente errado desde o início. Sua argumentação foi excepcionalmente fraca, e a decisão teve consequências danosas. E longe de trazer um acordo nacional para a questão do aborto, [os casos] Roe e Casey inflamaram o debate e aprofundaram a divisão", segue o texto de Alito.

O magistrado também rejeita a ideia de que a reversão do direito ao aborto possa subjugar ainda mais as mulheres na sociedade americana. Para argumentar, diz que elas já têm poder eleitoral e político. "A porcentagem de mulheres que se registra para votar é maior, inclusive, do que a de homens que o fazem."

"A Constituição não faz referência ao aborto, e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer disposição constitucional [...] A Constituição não proíbe os cidadãos de cada estado de regular ou proibir o aborto. [Os casos] Roe e Casey arrogaram essa autoridade. Agora anulamos essas decisões e devolvemos essa autoridade ao povo e a seus representantes eleitos."

Alito escreve ainda que a decisão "diz respeito ao direito constitucional ao aborto e a nenhum outro direito", destacando que a mudança de entendimento em relação à prática não deve "colocar em dúvida precedentes que não dizem respeito ao aborto". Em 1973, Roe vs. Wade foi decidido por maioria de 7 votos, com 5 juízes conservadores, nomeados por republicanos, somando-se a 2 progressistas.

Pouco após a divulgação do material, ativistas que defendem o direito ao aborto e outros que são antiaborto protestaram em frente ao prédio da Suprema Corte, em Washington. Um dos grupos, de acordo com relatos do jornal The Washington Post, dizia frases como "o aborto é uma violência", enquanto outros falavam "aborto é questão de saúde pública".​ Hoje, a Suprema Corte tem uma maioria de 6 a 3 para os conservadores, muito em parte graças às nomeações feitas pelo ex-presidente Donald Trump.

A mudança de entendimento, caso se confirme, representaria uma derrota significativa para o presidente Joe Biden, que vem criticando as restrições ao procedimento impostas por estados conservadores. O democrata enfrenta neste ano um teste eleitoral no pleito legislativo de meio de mandato, em novembro, quando a maioria estreita de seu partido no Congresso estará em jogo.

O aborto é um dos temas que mais geram polarização nos EUA. Políticos conservadores e republicanos tendem a defender a reversão do direito, enquanto democratas e progressistas apoiam que a prática seja liberada. De acordo com pesquisa do Pew Research Center do final de 2021, 59% dos americanos consideram que o aborto deve ser liberado, e 39% querem proibi-lo.

Pleiteados por políticos republicanos, projetos antiaborto cresceram nos últimos anos. O Texas, um dos casos mais notórios, aprovou uma lei que proíbe o procedimento após seis semanas de gestação, quando muitas mulheres ainda nem sabem que estão grávidas. A Suprema Corte manteve a decisão.

Já o estado do Oklahoma, que havia se transformado em refúgio para as texanas que buscavam o procedimento, também criminalizou o aborto, exceto em emergências médicas, e ainda impôs multas de até US$ 100 mil (R$ 465 mil) e penas de dez anos de prisão para quem realizar o procedimento por outras razões.

A governadora de Nova York, a democrata Kathy Hochul, foi uma das primeiras políticas americanas a comentar o texto do Politico, criticando a provável mudança de entendimento da Suprema Corte. "Seria um ataque vergonhoso ao nosso direito fundamental de escolha, e vamos combatê-lo com tudo o que temos", escreveu no Twitter, acrescentando que o estado vai "sempre garantir" o direito ao aborto.

Hillary Clinton, ex-secretária de Estado e candidata democrata derrotada por Trump em 2016, chamou a possível decisão de "um ataque direto à dignidade, aos direitos e à vida das mulheres", destacando que o entendimento atual está estabelecido há décadas. "Isso vai matar e subjugar as mulheres", disse.

"O Congresso deve aprovar um projeto que torne Roe vs. Wade a lei nesse país AGORA", escreveu, por sua vez, o senador Bernie Sanders. "E se não houver 60 votos no Senado para fazê-lo, e não há, devemos acabar com o ‘filibuster’ [procedimento que permite travar a tramitação de medidas]", seguiu.

A senadora Elizabeth Warren chamou a Suprema Corte de extremista, dizendo que o órgão quer impor visões impopulares e de ultradireita. A deputada Alexandria Ocasio-Cortez, uma das mais proeminentes vozes da ala mais à esquerda do Partido Democrata, criticou a eventual decisão, especulando que o tribunal deve mirar em breve outros direitos civis, como o casamento gay. O Centro Nacional do Direito da Mulher disse que "a linguagem do projeto de parecer que vazou é "ultrajante, irresponsável e chocante".

Já o senador republicano Tom Cotton pediu que o tribunal investigue a origem do vazamento "usando todas as ferramentas necessárias". Sobre o documento, disse: "Roe vs. Wade estava errado desde o início, e rezo para que a Suprema Corte siga a Constituição e permita que os estados voltem a proteger a vida".

A presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, e o líder da maioria democrata no Senado, Chuck Schumer, em comunicado conjunto, descreveram a possível decisão sinalizada na minuta como "uma das mais danosas da história moderna dos EUA". "Vários desses juízes mancharam a reputação da Suprema Corte às custas de dezenas de milhões de mulheres que, em breve, poderão ser destituídas da autonomia de seus corpos e dos direitos constitucionais que lhes foram conferidos há meio século."

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