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Críticas a decisão que barrava restrições ao aborto nos EUA partem de premissas equivocadas

Em sociedades modernas, cortes constitucionais têm função de defender direitos fundamentais, em especial os de minorias

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Taís Gasparian

Advogada, sócia do escritório RBMDFG- Advogados, mestre em filosofia e teoria geral do direito pela USP

Desde que a Suprema Corte dos EUA reformou a decisão que impedia restrições abusivas ao direito ao aborto, muitos passaram a criticar a deliberação que permitia a realização do procedimento até então, seja em razão de seus fundamentos, que agora os juízes entendem inadequados, seja devido à própria iniciativa que representava. Criticaram-na também por entenderem que faltou a ela a legitimidade de lei.

Em 1973, quando o caso Roe vs. Wade foi decidido, o tribunal ainda vivia sob o crédito de um período em que teve papel de extrema relevância na fixação de liberdades civis e na proteção de grupos minoritários.

Turistas caminhas em área próxima ao prédio da Suprema Corte dos EUA, em Washington
Turistas caminhas em área próxima ao prédio da Suprema Corte dos EUA, em Washington - Nathan Howard - 28.jun.22/Getty Images/AFP

Entre 1953 e 1969, a corte determinou o fim da segregação racial nas escolas públicas e no transporte público, declarou ilegal a confissão em casos criminais sem que o suspeito tivesse assistência jurídica e garantiu a representação proporcional à população nos distritos eleitorais, entre muitos outros avanços.

Foi logo após esse período, conhecido como o da Corte de Warren, em referência ao seu presidente, Earl Warren, que foi proferida a decisão do caso Roe. De lá para cá, com poucas exceções, a Suprema Corte foi se tornando mais conservadora e com decisões cada vez mais permeadas por contornos políticos.

Agora, com a reforma da decisão de 1973, pergunta-se: a corte fez com que o país regredisse 50 anos ou restituiu a vontade do povo, que não teria engolido a deliberação? A segunda questão leva a outra, há muito discutida: ao proferir decisões que criam direitos não expressamente previstos na Constituição, como foi no caso Roe, estaria a Suprema Corte usurpando a atribuição do Legislativo?

Essas críticas partem de algumas premissas equivocadas. Para alguns juristas, as cortes constitucionais não poderiam produzir normas e, embora tenham poder para dizer se uma lei, frente à Constituição, é válida ou não, não poderiam agir como se editassem uma lei.

Uma vez que a questão do aborto, nos EUA, foi durante quase 50 anos regulada por iniciativa do Judiciário, não do Legislativo, os seguidores dessa corrente afirmam que o tribunal, à época, tomou para si uma competência que seria exclusiva dos legisladores. Daí especula-se que a decisão de Roe foi reformada porque ela não teria tido legitimidade à época nem teria sido legitimada com o passar dos anos.

Essa visão, contudo, não leva em conta uma função que os tribunais constitucionais têm nas sociedades modernas, o de defender os direitos fundamentais, especialmente os de minorias. No meio jurídico, é chamada de função contramajoritária do poder jurisdicional —nome complicado para um assunto simples.

Considera-se que as maiorias são muito bem representadas, influentes e têm boas chances de fazerem valer seus direitos. Mas outros grupos mais vulneráveis e com menor poder de representação política, como mulheres, negros, LGTBQIA+ e outros tantos, mal têm voz. Assim, de modo resumido, o controle da constitucionalidade serviria de mecanismo de proteção de direitos fundamentais.

Ao proibir, em 1973, os estados de impor restrições abusivas ao aborto, o tribunal exerceu essa função protetora. As mulheres, à época e ainda hoje, seguem com pouca representatividade no Congresso e em altas esferas de poder. Assim, a decisão no caso Dobbs vs. Jackson Women’s Health Organizations, que reformou a de Roe vs. Wade, restitui uma situação muito nociva à condição da mulher.

Ao contrário do que tem sido dito, a importância do caso Roe não foi reconhecida desde o ano em que a decisão foi proferida —nem foi essa a decisão que tornou o tema do aborto tão polarizado nos EUA. A discussão entre democratas e republicanos em torno do assunto sofreu reviravoltas nesses últimos 49 anos, bastando dizer que nos anos 1970 eram os republicanos que apoiavam a decisão.

​Roe vs. Wade foi alçado a caso paradigmático muito tempo depois. No podcast "Direito e Sociedade", Gabriela Rondon mostrou que pesquisadoras nos EUA entendem que a oposição dos republicanos ao aborto era uma estratégia para atrair o eleitorado católico, tradicionalmente mais ligado aos democratas.

Para além das considerações de ordem jurídica, há evidências de que a restrição à interrupção voluntária da gravidez não diminui o número de abortos. Ao contrário, aumenta os riscos à saúde das mulheres, que seguirão buscando o procedimento, com profissionais menos capacitados e em condições rudimentares.

Considerando a atual composição da Suprema Corte, a decisão do caso Dobbs certamente prevalecerá por muitos anos. Aos cidadãos americanos, cuja maioria é favorável ao direito ao aborto, restará o caminho do Legislativo para que a interrupção da gestação não seja sujeita a óbices exagerados.

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