Desde que a Suprema Corte dos EUA reformou a decisão que impedia restrições abusivas ao direito ao aborto, muitos passaram a criticar a deliberação que permitia a realização do procedimento até então, seja em razão de seus fundamentos, que agora os juízes entendem inadequados, seja devido à própria iniciativa que representava. Criticaram-na também por entenderem que faltou a ela a legitimidade de lei.
Em 1973, quando o caso Roe vs. Wade foi decidido, o tribunal ainda vivia sob o crédito de um período em que teve papel de extrema relevância na fixação de liberdades civis e na proteção de grupos minoritários.
Entre 1953 e 1969, a corte determinou o fim da segregação racial nas escolas públicas e no transporte público, declarou ilegal a confissão em casos criminais sem que o suspeito tivesse assistência jurídica e garantiu a representação proporcional à população nos distritos eleitorais, entre muitos outros avanços.
Foi logo após esse período, conhecido como o da Corte de Warren, em referência ao seu presidente, Earl Warren, que foi proferida a decisão do caso Roe. De lá para cá, com poucas exceções, a Suprema Corte foi se tornando mais conservadora e com decisões cada vez mais permeadas por contornos políticos.
Agora, com a reforma da decisão de 1973, pergunta-se: a corte fez com que o país regredisse 50 anos ou restituiu a vontade do povo, que não teria engolido a deliberação? A segunda questão leva a outra, há muito discutida: ao proferir decisões que criam direitos não expressamente previstos na Constituição, como foi no caso Roe, estaria a Suprema Corte usurpando a atribuição do Legislativo?
Essas críticas partem de algumas premissas equivocadas. Para alguns juristas, as cortes constitucionais não poderiam produzir normas e, embora tenham poder para dizer se uma lei, frente à Constituição, é válida ou não, não poderiam agir como se editassem uma lei.
Uma vez que a questão do aborto, nos EUA, foi durante quase 50 anos regulada por iniciativa do Judiciário, não do Legislativo, os seguidores dessa corrente afirmam que o tribunal, à época, tomou para si uma competência que seria exclusiva dos legisladores. Daí especula-se que a decisão de Roe foi reformada porque ela não teria tido legitimidade à época nem teria sido legitimada com o passar dos anos.
Essa visão, contudo, não leva em conta uma função que os tribunais constitucionais têm nas sociedades modernas, o de defender os direitos fundamentais, especialmente os de minorias. No meio jurídico, é chamada de função contramajoritária do poder jurisdicional —nome complicado para um assunto simples.
Considera-se que as maiorias são muito bem representadas, influentes e têm boas chances de fazerem valer seus direitos. Mas outros grupos mais vulneráveis e com menor poder de representação política, como mulheres, negros, LGTBQIA+ e outros tantos, mal têm voz. Assim, de modo resumido, o controle da constitucionalidade serviria de mecanismo de proteção de direitos fundamentais.
Ao proibir, em 1973, os estados de impor restrições abusivas ao aborto, o tribunal exerceu essa função protetora. As mulheres, à época e ainda hoje, seguem com pouca representatividade no Congresso e em altas esferas de poder. Assim, a decisão no caso Dobbs vs. Jackson Women’s Health Organizations, que reformou a de Roe vs. Wade, restitui uma situação muito nociva à condição da mulher.
Ao contrário do que tem sido dito, a importância do caso Roe não foi reconhecida desde o ano em que a decisão foi proferida —nem foi essa a decisão que tornou o tema do aborto tão polarizado nos EUA. A discussão entre democratas e republicanos em torno do assunto sofreu reviravoltas nesses últimos 49 anos, bastando dizer que nos anos 1970 eram os republicanos que apoiavam a decisão.
Roe vs. Wade foi alçado a caso paradigmático muito tempo depois. No podcast "Direito e Sociedade", Gabriela Rondon mostrou que pesquisadoras nos EUA entendem que a oposição dos republicanos ao aborto era uma estratégia para atrair o eleitorado católico, tradicionalmente mais ligado aos democratas.
Para além das considerações de ordem jurídica, há evidências de que a restrição à interrupção voluntária da gravidez não diminui o número de abortos. Ao contrário, aumenta os riscos à saúde das mulheres, que seguirão buscando o procedimento, com profissionais menos capacitados e em condições rudimentares.
Considerando a atual composição da Suprema Corte, a decisão do caso Dobbs certamente prevalecerá por muitos anos. Aos cidadãos americanos, cuja maioria é favorável ao direito ao aborto, restará o caminho do Legislativo para que a interrupção da gestação não seja sujeita a óbices exagerados.
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