Descrição de chapéu
Kim Phuc Phan Thi

Não somos símbolos, somos seres humanos, diz ativista eternizada em foto da Guerra do Vietnã

Kim Phuc Phan Thi teve vida transformada após registro feito há 50 anos e afirma não ser mais 'a menina do napalm'

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Kim Phuc Phan Thi

Vive no Canadá e trabalha na Kim Foundation International, que presta ajuda a crianças vítimas de guerras em todo o mundo

The New York Times

Cresci no vilarejo de Trang Bang, no Vietnã do Sul. Minha mãe disse que eu ria muito quando era menina. Tínhamos uma vida simples, com fartura de comida, pois minha família tinha uma fazenda, e minha mãe administrava o melhor restaurante do lugar. Lembro-me de que amava a escola e as brincadeiras com meus primos, pulando corda e correndo umas atrás das outras alegremente.

Tudo isso mudou em 8 de junho de 1972. Tenho apenas lampejos de memória daquele dia terrível. Eu estava brincando com meus primos no pátio do templo. No momento seguinte, passou um avião voando baixo com um barulho ensurdecedor. Então houve explosões, fumaça e uma dor horrível. Eu tinha 9 anos.

STANDALONE PORTRAIT Ñ Kim Phuc Phan Thi at her home in Ontario, Canada, on May 31, 2022. She was famously pictured in a Pulitzer Pize-winning photo by Associated Press photographer Nick Ut that depicted her fleeing her native village in South Vietnam after a napalm attack in June 1972. (May Truong/The New York Times)
A ativista Kim Phuc Phan Thi fotografada em sua casa, em Ontário, no Canadá - May Truong/The New York Times

O napalm cola em você, não importa o quão rápido você corra, causando queimaduras e dores terríveis que duram a vida toda. Não me lembro de correr e gritar: "Nóng quá, nóng quá!" (muito quente, muito quente!). Mas as imagens de filmes e as memórias de outras pessoas mostram que gritei.

Você provavelmente já viu minha foto tirada naquele dia, fugindo das explosões com os outros –uma menina nua com os braços estendidos, gritando de dor. Foi tirada pelo fotógrafo sul-vietnamita Nick Ut, que trabalhava para a agência Associated Press, e publicada nas primeiras páginas dos jornais do mundo todo. Ela ganhou o Prêmio Pulitzer. Com o tempo, tornou-se uma das mais famosas da Guerra do Vietnã.

Nick mudou minha vida para sempre com aquela foto notável. Mas ele também salvou minha vida. Depois que ele tirou a foto, largou a câmera, envolveu-me em um cobertor e me carregou correndo em busca de atendimento médico. Sou eternamente grata.

No entanto, também me lembro de odiá-lo às vezes. Cresci detestando aquela foto. Pensava comigo mesma: "Sou uma garotinha. Estou nua. Por que ele tirou aquela foto? Por que meus pais não me protegeram? Por que ele imprimiu aquela foto? Por que eu era a única criança nua, enquanto meus irmãos e primos na foto estavam vestidos?". Eu me sentia feia e envergonhada.

O fotógrafo Nick Ut com um cartaz exibindo sua foto premiada da Guerra do Vietnã, ao lado da retratada, Kim Phuc, em visita que os dois fizeram ao papa Francisco - Alberto Pizzoli - 11.mai.22/AFP

Enquanto crescia, às vezes eu desejava desaparecer não apenas devido aos meus ferimentos –as queimaduras marcavam um terço do meu corpo e causavam dor intensa e crônica–, mas também em razão da vergonha e do constrangimento de ser desfigurada.

Eu tentava esconder minhas cicatrizes sob as roupas. Sentia uma ansiedade e uma depressão horríveis. As crianças na escola fugiam de mim. Eu era uma figura de pena para os vizinhos e, até certo ponto, para os meus pais. À medida que envelhecia, temia que ninguém jamais me amasse.

Enquanto isso, a foto ficou ainda mais famosa, tornando mais difícil navegar por minha vida privada e emocional. A partir dos anos 1980, participei de entrevistas intermináveis e encontros com membros da realeza, premiês e outros líderes, todos os quais esperavam encontrar algum significado naquela imagem e em minha experiência. A criança correndo pela rua tornou-se um símbolo dos horrores da guerra. A pessoa real olhava da sombra, com medo de que fosse exposta como uma pessoa danificada.

As fotografias, por definição, captam um momento no tempo. Mas os sobreviventes nessas fotos, em especial as crianças, devem de alguma forma seguir em frente. Não somos símbolos. Somos seres humanos. Precisamos encontrar trabalho, pessoas para amar, comunidades para abraçar, lugares para aprender e ser nutridos.

Foi somente na idade adulta, depois de desertar para o Canadá, que comecei a encontrar paz e a realizar minha missão na vida, com a ajuda de minha religião, meu marido e amigos. Ajudei a criar uma fundação e comecei a viajar para países devastados pela guerra para dar assistência médica e psicológica a crianças vítimas da guerra, oferecendo, espero, um sentido de possibilidades.

Sei como é ter sua aldeia bombardeada, sua casa destruída, ver membros da família morrerem e corpos de civis inocentes caídos na rua. Esses são os horrores da Guerra do Vietnã evocados em inúmeras fotografias e vídeos. Infelizmente, também são imagens das guerras em todos os lugares, das vidas humanas preciosas sendo danificadas e destruídas hoje na Ucrânia.

São também, de forma diferente, as imagens horríveis dos tiroteios nas escolas. Podemos não ver os corpos, como fazemos com as guerras, mas esses ataques são o equivalente doméstico à guerra. A ideia de compartilhar as imagens da carnificina, especialmente de crianças, pode parecer insuportável –mas devemos enfrentá-las. É mais fácil se esconder da realidade da guerra se não virmos suas consequências.

Não posso falar pelas famílias em Uvalde, no Texas, mas acho que mostrar ao mundo as consequências reais de um tiroteio pode tornar concreta a terrível realidade. Devemos enfrentar essa violência de frente, e o primeiro passo é olhar para ela.

Kim Phuc em sua casa no Canadá - May Truong/The New York Times

Carreguei os resultados da guerra em meu corpo. Você não se livra das cicatrizes, física ou mentalmente.

Sou grata hoje pela potência dessa minha fotografia aos nove anos de idade, assim como pela jornada que fiz como pessoa. Meu horror –do qual pouco me lembro– tornou-se universal. Estou orgulhosa porque me tornei um símbolo da paz. Levei muito tempo para abraçar isso como pessoa.

Posso dizer, 50 anos depois, que estou feliz por Nick ter captado aquele momento, mesmo com todas as dificuldades que aquela imagem criou para mim.

Essa imagem sempre servirá como um lembrete do mal indescritível de que a humanidade é capaz. Ainda assim, acredito que a paz, o amor e o perdão sempre serão mais poderosos do que qualquer tipo de arma.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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