Otan se prepara para guerra com a Rússia e vê China como ameaça

Sob nova doutrina, EUA puxam expansão militar; Turquia evita fiasco de cúpula, mas divisões persistem

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São Paulo

Em 2010, quando aprovou seu mais recente documento de doutrina, a Otan habitava um mundo em que fazia papel de coadjuvante no Afeganistão, a China era um país distante, e a Rússia, descrita como uma parceira estratégica.

Nesta quarta (29), 12 anos depois, a aliança militar liderada pelos EUA anunciou sua refundação, cortesia da Guerra da Ucrânia, entronizou a China como uma ameaça potencial e se prepara para um período de expansão contra Moscou ancorada em ações americanas e na entrada de Suécia e Finlândia no clube.

Chefes de Estado e de governo de países-membros da Otan posam para a foto oficial da Cúpula de Madri
Chefes de Estado e de governo de membros da Otan posam para a foto oficial da Cúpula de Madri - Pierre-Philippe Marcou/AFP

O novo Conceito Estratégico da Otan volta à fundação do grupo para encontrar sua razão de ser: combater Moscou com dissuasão militar. Os russos querem "estabelecer esferas de influência e controle direto por coerção, subversão, agressão e anexação", diz o texto, que ecoa os temores de uma Terceira Guerra.

Aos integrantes da Otan, reunidos em Madri, o presidente Volodimir Zelenski voltou a pedir mais armas, particularmente artilharia. Nas últimas semanas, o balanço militar pendeu para o lado russo no Donbass, mas há também o interesse de Kiev em pintar um quadro ainda mais dramático para se armar melhor.

Já Putin disse à agência russa Interfax que a Otan tem "ambições imperiais", mas voltou a dizer que sua resposta à adesão nórdica será proporcional ao tipo de infraestrutura militar instalada nos países. Ambos já disseram que não querem bases da Otan em seu território. O russo também voltou a afirmar que seu objetivo é "libertar o Donbass e ter garantias de segurança", e que suas forças "avançam".

"A escalada militar de Moscou, incluindo as regiões dos mares Báltico, Negro e Mediterrâneo, além de sua integração militar com a Belarus, desafia nossas segurança e interesses", completa o Conceito, que aponta para as ameaças de uso de armas nucleares feitas por Putin nesta crise e o "inovador e disruptivo" desenvolvimento de armas com capacidade dupla, atômica e convencional, como mísseis hipersônicos.

Para fazer frente a isso, mais gasto militar: em 2021, só 8 dos 30 membros da Otan aplicaram mais do que 2% de seu PIB em defesa, como a aliança preconiza. É mais do que os três países que o faziam em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e deitou a fundação da guerra ora em curso, mas ainda longe da meta.

"Enfrentamos uma mudança radical", disse o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, para quem em 2022 nove membros chegarão aos 2% ou mais, e em 2024, 19. A meta será "o piso, não o teto" do gasto militar —com efeito, os EUA puxam o comboio com 3,57% do maior PIB do mundo para a área militar.

É uma vingança tardia de Donald Trump, o mercurial presidente americano que colocou a Otan contra a parede, a ponto de fazer o líder francês, Emmanuel Macron, dizer que o clube estava em "morte cerebral".

Seja como for, são os americanos os líderes, e por isso o presidente Joe Biden fez o anúncio mais concreto de aumento de musculatura militar contra a Rússia. Os EUA terão pela primeira vez no pós-Guerra Fria um quartel-general de Exército no Leste Europeu, na belicosa e antirrussa Polônia.

"Putin destruiu a paz na Europa. Os EUA e seus aliados estão se mobilizando, provando que a Otan é mais necessária agora do que nunca", disse Biden. Um dos motivos da invasão foi impedir a adesão da Ucrânia à Otan, congelada desde um convite feito a ela em 2008, renovado sem muita convicção no Conceito.

O reforço incluirá mais dois destróieres baseados na Espanha —hoje são quatro—, dois novos esquadrões com caças F-35 no Reino Unido, brigadas não permanentes nos Estados Bálticos e na Romênia e defesa aérea adicional para Alemanha e Itália. Trata-se do maior deslocamento de forças americanas na Europa desde a Guerra Fria. Hoje há 100 mil soldados de Washington no continente, e é provável que haverá mais. Ao todo, a Otan diz que aumentará de 40 mil para 300 mil seu efetivo de reação rápida.

Em números gerais, a aliança já é bem superior à Rússia: gastou com defesa em 2021 US$ 1 trilhão, ante US$ 62 bilhões de Moscou, e tem 3,28 milhões de soldados, frente a 900 mil russos. Mas esses dados são ilusórios, como a natureza do combate atual mostra, e o Kremlin tem o maior arsenal nuclear do mundo.

Em troca de tal comprometimento, Biden viu sua principal preocupação estratégica atendida pelo novo Conceito: a China. O documento toma o cuidado de não chamar o gigante asiático de adversário, mas até aí também diz que gostaria de ter diálogo com Moscou. Afirma, contudo, que é preciso estar pronto para enfrentar as "táticas coercitivas e esforços para dividir a aliança" por parte de Pequim.

Mais relevante ainda é a simbólica presença de representantes de Austrália, Nova Zelândia, Japão e Coreia do Sul como convidados da cúpula, que acaba nesta quinta (30). Pequim respondeu diretamente ao que vê como uma intromissão em seu quintal estratégico. "As expansões depois da Guerra Fria não só falharam em tornar a Europa mais segura, mas também semearam as sementes do conflito [na Ucrânia]. Não podemos permitir que esse tipo de turbulência e conflito que está afetando partes do mundo ocorra na Ásia-Pacífico", afirmou o representante chinês na ONU, Zhang Jun, na noite de terça (28).

Desde o começo da guerra, em 24 de fevereiro, paralelos vêm sendo traçados no Ocidente entre o que aconteceu com a Ucrânia e o que pode ocorrer em Taiwan, embora sejam casos incomparáveis do ponto de vista histórico —a própria ONU reconhece a demanda chinesa sobre Taipé.

Se alguém tinha dúvida de que o mundo se divide mais no ambiente da Guerra Fria 2.0, o documento da Otan deixa explícita a nova realidade. Com efeito, Putin é o principal aliado de Xi Jinping, o líder chinês que pretende ser reconduzido a mais cinco anos de poder em novembro.

Turquia apresenta a conta por apoio

Mas o foco mais imediato é na Europa, com o já conhecido, mas nem por isso menos histórico, anúncio de adesão da Suécia e da Finlândia à Otan após décadas (20 de Estocolmo, 7 de Helsinque) de neutralidade.

O processo deverá ser acelerado, até porque as Forças Armadas de ambos os países já operam em sintonia com a aliança, mas não há uma data definida. Stoltenberg agradeceu nesta quarta à Turquia, que retirou seu veto à entrada dos nórdicos na aliança com um acerto patrocinado pelos EUA na véspera.

O preço vai se tornando claro: Ancara divulgou uma lista com 33 opositores exilados nos dois países que quer ver julgados como terroristas. A Suécia disse que vai estudar o caso. Além disso, autoridades americanas já sinalizaram a luz verde para a venda de caças F-16 em versões mais modernas para substituir a frota de 260 aviões do tipo turcos. Ancara foi expulsa do programa de fabricação do novo F-35 após comprar sistemas antiaéreos russos, um desafio político do presidente Recep Tayyip Erdogan à negativa de Trump de extraditar o acusado de bolar o golpe fracassado contra o turco em 2016.

Com a anuência turca, a cúpula escapou de um fiasco: se não anunciasse a adesão sueca e finlandesa, ficaria evidente a dissonância. Ela tem várias facetas: a cautela maior de grandes economias, Alemanha e França à frente, ante as sanções contra Putin, a rivalidade histórica entre turcos e gregos, a desconfiança de Paris sobre Washington após a perda de um contrato bilionário de venda de submarinos à Austrália.

A questão central, sobre quem irá pagar a conta do discurso, também vai se impor. Aumento de gasto militar é tema complexo em democracias: pesquisa recente mostrou que a maioria dos europeus prefere uma solução de acomodação para a Guerra da Ucrânia, por exemplo.

Rússia vê ameaça de expansão desde a Guerra Fria

Do ponto de vista russo, são avenidas a explorar, embora para consumo externo o momento seja de união e assertividade do Ocidente. De forma simbólica, Putin está fazendo sua primeira viagem internacional depois da guerra para se encontrar com líderes da Ásia Central no Tadjiquistão e no Turcomenistão. Da mesma forma, as fotografias oficiais entregavam um líder isolado em uma enorme mesa com seus pares.

Mas a resistência russa às sanções ocidentais e o amplo apetite chinês e indiano por seu petróleo têm equilibrado por ora a situação econômica sob Putin. De resto, para o Kremlin foram os ocidentais que começaram a briga, ao alienar a Rússia das tentativas de aproximação após a derrota do comunismo.

Com o fim da União Soviética, em 1991, a Rússia que emergiu dos escombros era um país frágil, recuperado à base de receitas com venda de petróleo e gás e o militarismo ufanista da era Putin, iniciada em 1999. Daquele ano para cá, foram cinco expansões a leste, abarcando 14 países ex-comunistas.

O argumento na mão contrária é de que a Rússia, apesar de defender a neutralidade no seu entorno, na realidade busca militarizá-lo. Tornou a ditadura da Belarus abalada por uma crise política em 2020 num protetorado militar. Lutou em 2008 na Geórgia e, de 2014 para cá, na Ucrânia, justamente em nome desse cordão de isolamento. Membros da Otan como a Polônia dizem que serão os próximos.

CRONOLOGIA

1949 - Os 12 países fundadores da Otan assinam o Tratado do Atlântico Norte em Washington

1952 - Turquia e Grécia aderem

1955 - A Alemanha Ocidental se une à Otan, após anos de desnazificação

1956 - Primeira crise interna, com EUA se opondo à intervenção franco-britânica na crise de Suez

1961 - A Guerra Fria eleva patamar com a construção do muro de Berlim

1966 - França deixa a estrutura de comando da Otan, acusando excesso de poder americano

1982 - Espanha entra na Otan

1989 - Cai o muro de Berlim, começo do fim do comunismo soviético

1990 - Reunificação alemã, Alemanha Oriental deixa o Pacto de Varsóvia

1991 - Fim da União Soviética e do Pacto de Varsóvia

1994 - Primeira ação militar da Otan: derrubada de quatro aviões sérvios na Bósnia

1994 - Guerra na Tchechênia expõe fraqueza militar russa; Moscou adere a programa de parceria

1996 - Russos dão apoio a tropas da Otan na ex-Iugoslávia

1999 - Otan ataca a Iugoslávia, início do afastamento russo; Polônia, Hungria e República Tcheca aderem

2001 - Em resposta ao 11 de Setembro, é invocado pela primeira vez o artigo 5 da Otan, de defesa mútua em caso de agressão

2003 - Mais um racha: países liderados pela Alemanha vetam Otan na Guerra do Iraque

2004 – Mais uma expansão ao leste, com sete países ex-comunistas, inclusive os Estados Bálticos, elevando o número de membros para 26

2008 - Para vetar adesão à Otan, Rússia trava guerra com a Geórgia

2009 - França volta ao comando militar da Otan; Albânia e Croácia aderem

2011 - Com mandato da ONU, Otan controla espaço aéreo da Líbia

2014 - Rússia anexa a Crimeia e intervém no leste da Ucrânia para evitar adesão de Kiev ao Ocidente

2017 - Montenegro adere à Otan

2018 - Racha entre EUA de Trump e Otan cresce com cobranças americanas por mais gasto

2019 - Auge da crise com Trump. Francês Emmanuel Macron vê aliança com "morte cerebral"

2020 - Macedônia do Norte se torna o 30º Estado da Otan

2021 – Sem combater no Afeganistão desde 2015, aliança é pega desprevenida pela retirada americana na atribulada evacuação de Cabul

2022 – Rússia invade a Ucrânia, aliança renova senso de missão com envio crescente de armas para Kiev, mas enfrenta rachas internos sobre a intensidade da ajuda. Finlândia e Suécia são convidados a entrar no clube. Países, como a Alemanha, revisam para cima seus gastos militares. Nova doutrina militar prevê reforço no leste e cita a China como ameaça.

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