Papa Francisco conclui reforma no Vaticano em meio a rumores de renúncia

Escolha de novos cardeais e mudança na Cúria Romana alimentam especulações em torno do pontífice

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Edison Veiga
Bled (Eslovênia)

Na esteira do anúncio de 21 novos cardeais e da entrada em vigor da ampla reforma realizada na Cúria Romana, o papa Francisco ganhou os holofotes por um rumor que o persegue de tempos em tempos: o de que estaria preparando a renúncia, seguindo os passos do antecessor, o hoje papa emérito Bento 16.

Em mais de uma vez, o próprio pontífice admitiu a possibilidade. Ao que parece, o gesto de Bento, primeiro papa a renunciar desde Gregório 12 (1406-1414), reabriu o precedente para que líderes da Igreja Católica não encarem a missão necessariamente como vitalícia. E, ao contrário de João Paulo 2º (1920-2005), não se vejam obrigados a definhar em público, tendo a velhice e eventuais doenças expostas globalmente.

O papa Francisco, de cadeira de rodas, durante missa de Pentecostes, no Vaticano
O papa Francisco, de cadeira de rodas, durante missa de Pentecostes, no Vaticano - Remo Casilli - 5.jun.22/Reuters

Mas o que alimenta a especulação de que a aposentadoria de Francisco pode estar próxima são alguns gestos. Em uma instituição na qual símbolos são muito importantes, qualquer movimento tende a ser interpretado em camadas. E, ao fato de o religioso argentino, aos 85 anos, apresentar dificuldades de locomoção em aparições públicas, inclusive recorrendo a cadeira de rodas, somam-se pontos curiosos.

Junto ao consistório de agosto, quando serão empossados os novos cardeais, Francisco já agendou uma visita à cidade italiana de L’Aquila, para visitar o túmulo de um ilustre antecessor: Celestino 5º (1215-1296), primeiro a renunciar livremente ao papado, em 1294. "Para impulsionar ainda mais as especulações, a cidade também foi visitada por Bento 16 pouco antes de ele renunciar", lembra Mirticeli Medeiros, pesquisadora da história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

Há, ainda, a estranheza com um consistório marcado para agosto, mês de férias na Itália —nos últimos anos, os cardeais assumiram os postos em novembro. Para alguns observadores, a decisão indicaria certa pressa. E mais: Francisco convocou outro consistório, extraordinário, dois dias depois do ordinário.

"Será uma super-reunião, que desde 2015 não era feita nessa modalidade [consistório extraordinário], para tratar da reforma da Cúria Romana, que entrou em vigor no último dia 5", explica Medeiros.

Em texto recente, o vaticanista italiano Andrea Gagliarducci afirma que a ideia do evento extraordinário pode ter sido uma cartada política do papa para "discutir as decisões somente depois que elas já foram tomadas" —no caso, levando à mesa os pontos da reforma da Cúria, que simplificou processos e dissolveu hierarquias, algo pouco consensual entre os cardeais, após "congelar o debate" até o fim de agosto.

"Observadores até especulam que Francisco poderia encerrar a reunião anunciando a saída, o que seria um gesto marcante, por enviar a mensagem de que, uma vez concluído o mandato, e o mandato do papa Francisco é, acima de tudo, a reforma da Cúria, pode-se deixar o cargo", afirmou Gagliarducci.

Medeiros discorda. "Após tê-lo acompanhado por todos esses anos, é difícil imaginar que daria esse gosto aos opositores. Prefiro pensar que faz isso para criar um clima de pré-conclave e avaliar se realmente fez boas escolhas. E se for uma sacada para averiguar como a igreja se articularia na sua ausência?"

Vice-diretor do Lay Centre em Roma, o vaticanista Filipe Domingues lembra que "rumores sobre uma possível renúncia de Francisco surgem a cada dois anos". "Mas ele segue marcando viagens, cumprindo agendas, mesmo em cadeira de rodas. Se ele realmente estivesse mal, poderia cancelar mais coisas", afirma ele. "Não acho que ele esteja com pressa [para dar esse passo]. Para encerrar seu pontificado ele precisa de um fator novo que não existe hoje, e isso pode ser uma piora em seu estado de saúde."

Outra ponderação feita pelo especialista é que seria um tanto incômodo, para o Vaticano, a existência de dois papas eméritos gravitando em torno de um novo ocupante do trono de Pedro. Nesse sentido, Francisco não renunciaria antes da morte do antecessor. "Haver três papas vivos seria algo inédito", diz o teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Se cabem aos cardeais a eleição de um novo papa, em caso de renúncia ou morte do atual, o gancho desses acontecimentos de agosto é justamente a posse dos novos purpurados nomeados por Francisco.

A partir de 27 de agosto, a igreja terá 132 cardeais eleitores, ou seja, com menos de 80 anos, de 69 países. De acordo com levantamento realizado pelo filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, do total dos eleitores a imensa maioria, 83, foi nomeada por Francisco —38 por Bento 16, e 11 por João Paulo 2º.

Dentre os novos rostos, Francisco aprofundou ainda mais o modelo que se tornou característico de seu pontificado: nomes desconhecidos, vindos de regiões antes relegadas. Em um futuro conclave, a Europa continua sendo o continente com maior peso eleitoral, mas, ao contrário de outros tempos, está longe de ter a maioria absoluta: 40% do colégio cardinalício é formado por prelados do Velho Mundo, 29% são das Américas, 16%, asiáticos, e 13%, africanos. A Oceania representa os 2% restantes.

Seja pelos postos que ocupam, seja por suas trajetórias, alguns dos novos cardeais vêm chamando a atenção. É o caso de Basílio Nascimento, o primeiro cardeal do Timor Leste. "Já estava passando da hora, porque o país é, em termos de proporção, o mais católico da Ásia", diz Medeiros. "A nação dá à Igreja Católica status de garantia da liberdade, já que a instituição atuou no processo de independência do país e é reconhecida como uma das quatro frentes que contribuíram para que ela se efetivasse."

Também se destaca Giorgio Marengo, prefeito apostólico da Mongólia, de apenas 48 anos. "Ele está à frente de uma comunidade de apenas 1.500 pessoas", diz a vaticanista, ressaltando que o gesto está em linha com a "geopolítica dos esquecidos", marca do pontificado de Francisco. "Fazer esse tipo de nomeação, em locais ‘pouco expressivos’, era algo impensável até um tempo atrás."

Francisco fará dois novos cardeais brasileiros, deixando os representantes nacionais com seis eleitores em um eventual conclave. Arcebispo de Brasília, Paulo Cezar Costa já circulava com desenvoltura pelos corredores do Vaticano, integrando comissões e articulando pautas. "O papa se identifica com Paulo Cezar e já vinha dando funções de confiança a ele. Francisco busca perfis que apresentam a mesma visão que ele tem da igreja, ou seja, pastoral, aberta aos pobres e às minorias", afirma o vaticanista Domingues.

Já o arcebispo de Manaus, Leonardo Steiner será, nas palavras de Altemeyer Junior, o "cardeal atuante no coração da Amazônia". É o primeiro purpurado brasileiro a comandar uma diocese na região amazônica e denota a preocupação ecológica e política de Francisco com a área. "Francisco criou uma conferência eclesial só para a Amazônia, por considerá-la uma região que merece atenção especial", afirma Medeiros. "E não faz isso focando só a evangelização, mas também devido aos ataques ao ambiente e em razão da violação dos direitos dos povos indígenas, temas que ganharam muito espaço no atual pontificado."

Para Medeiros, pela trajetória de Steiner, sua nomeação é significativa. "Ninguém melhor para representar Francisco que alguém capaz de garantir a mediação entre a Amazônia e o Vaticano."


Quem são alguns dos outros pontífices que renunciaram

Clemente 1º (92-101): Um dos primeiros papas, teria sido o primeiro a renunciar, por razões que não são claras;

Ponciano (230-235): Renunciou durante a perseguição aos cristãos pelo imperador Maximino;

Marcelino (296-304): Não está certo se abdicou ou se foi deposto após cumprir ordem do imperador Diocleciano de oferecer sacrifícios a deuses pagãos;

Bento 5º (964): Aceitou ser deposto por Otto 1º, imperador do Sacro Império Romano, depois de apenas um mês no posto;

Bento 9º (1032-1045): Deixo o posto após vender o papado a Gregório 6º;

Celestino 5º (1294): Ficou apenas cinco meses no papado e emitiu decreto que permitia a renúncia; foi preso e morreu na prisão;

Gregório 12 (1406-1415): Renunciou para encerrar o Grande Cisma;

Bento 16 (2005-2013): Alegando falta de ‘vigor tanto do corpo como do espírito’ aos 85 anos, surpreendeu ao ser o primeiro papa a abdicar em quase 600 anos; com 95 anos hoje, ainda vive no Vaticano.

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