Descrição de chapéu América Latina LGBTQIA+

Atual Constituição do Chile amarra democracia em camisa de força, diz 1ª deputada trans

Para Emilia Schneider, fragmentação política e desinformação explicam baixos índices de apoio à proposta de nova Carta

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São Paulo

Emilia Schneider, 25, pensava ter entrado para um clube que não a queria como sócia. Mas a primeira deputada trans do Chile se surpreendeu com os primeiros meses de mandato, durante os quais diz ter encontrado um ambiente de respeito no Congresso e na sociedade.

Isso, talvez, seja parte do que ela descreve como uma mudança no Chile, que segue conservador, mas vê florescer um progressismo que, afirma ela, foi puxado em grande parte pelo movimento estudantil.

Emilia Schneider, primeira trans eleita para a Câmara dos Deputados do Chile, em entrevista à Folha em São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

Há ainda o ingrediente histórico. Emilia é bisneta do general René Schneider, assassinado em 1970, anos antes do golpe que derrubou o socialista Salvador Allende, por se opor aos intentos antidemocráticos das Forças Armadas. Ela falou com a Folha em um hotel em São Paulo, onde está para participar, neste sábado (9), do evento Virada ODS, que discute os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

A história da sua família influenciou na decisão de ingressar na política? Não influenciou muito, porque o que mais me motivou foram fenômenos da minha geração, como os movimentos estudantil e feminista. Mas influenciou no olhar que criei sobre o país e a nossa história. Meu bisavô foi assassinado em um contexto no qual uma parte importante das Forças Armadas do país estava organizando um golpe, e isso me deu uma perspectiva dos horrores da ditadura, da importância da democracia e dos direitos humanos.

Como esse período da história está relacionado à sua geração? As ditaduras da América Latina não foram casualidades, mas uma articulação para frear processos de transformação. É importante para lembrar os anseios de mudança que existem e para entender que o que a ultradireita nos oferece hoje como saída não passa de uma receita que já conhecemos: autoritarismo, ultraconservadorismo e negação de direitos.

Schneider durante ato em defesa do plebiscito que viria a aprovar a elaboração de uma proposta de nova Constituição para o Chile - Pablo Sanhueza - 26.fev.20/Reuters

Boric tem baixos índices de aprovação, 33% segundo as pesquisas mais recentes. A que atribui isso? Tem sido difícil a instalação do governo de transformação, sobretudo porque estamos governando com uma população que vê as instituições muito distantes de suas necessidades. A nossa sociedade também está muito fragmentada. No Congresso, não há maiorias. Se não tomarmos a dianteira para organizar os atores sociais, vai ser muito difícil avançar e combater o mal-estar da população com a política.

Pesquisas também mostram que mais da metade da população diz rejeitar o texto da nova Constituição. Acha possível mudar esses números até setembro, quando ele será votado? Temos que fazer com que o conteúdo chegue até a população sem mentiras. Hoje em dia, a Carta que temos, da época da ditadura, apesar de todas as reformas já feitas, impede que a democracia possa funcionar, porque temos uma camisa de força. A nova Constituição vai permitir que a democracia se expresse. Os partidos que disseram não à ditadura no final dos anos 1990 hoje estão a favor da nova Carta. E os partidos que votaram para manter a ditadura hoje negam a nova Constituição. Creio que isso diz muito sobre o que está em jogo.

Há um artigo da proposta que fala sobre o direito à educação sexual. Pode nos explicar como seria na prática? São medidas para que, em todo o nosso ciclo formativo, tenhamos informações sobre sexualidade, reprodução, corpo e identidade. Isso tem diferentes benefícios, como permitir que meninos e meninas conheçam os limites e os direitos sobre seus corpos, para prevenir abusos infantis e para que não cresçam discriminando orientações sexuais ou identidades de gênero distintas, além de prevenir a transmissão de ISTs e a gravidez na adolescência.

Há também um artigo para garantir o direito ao aborto. Mas, mesmo que seja aprovada a Constituição, o Congresso terá de legislar sobre isso. Qual o desafio de aprovar uma matéria do tipo em um país e um Congresso ainda conservadores? O Chile tem uma sociedade conservadora, mas que tem mudado muito nos últimos anos. Têm havido muitas mentiras da direita e da ultradireita, como que isso permitira um aborto aos nove meses de gestação. Um aborto aos nove meses é um parto. Ter uma nova Constituição vai facilitar essa discussão no Congresso, porque teremos que cumprir isso e chegar a um grande acordo.

A política institucional pode ser violenta com as mulheres e a população LGBTQIA+. Como tem sido a sua experiência? Tenho me sentido muito bem recebida pela população, e temos uma bancada da comunidade LGBTQIA+, pela primeira vez, com quatro mulheres representantes da comunidade. Mas, sim, tenho me deparado com uma agenda de ódio impulsionada pela ultradireita. Mas os trabalhadores e servidores do Congresso são pessoas muito boas. Também tenho me surpreendido com a lentidão dos processos legislativos no nosso país e creio que isso pode mudar com a nova Constituição.

Quais as principais bandeiras do movimento LGBTQIA+ no Chile? A primeira é como combater os crimes de ódio e garantir segurança às pessoas de diversidades sexuais e de gênero nos espaços públicos. Também o acesso a direitos básicos, como saúde, educação e trabalho digno. Outro desafio é como reparamos as gerações LGBTQIA+ mais velhas, que não gozaram dos poucos direitos que a minha tem usufruído e que hoje estão em um abandono brutal.

Tem referências do Brasil? Sim. Marielle Franco, uma figura muito importante, não somente por seu assassinato brutal, mas pelo legado de luta pelas mulheres negras e lésbicas e pela esquerda. Também o ex-presidente Lula, que tirou muitas pessoas da pobreza e teve políticas importantes de acesso à educação. Tomara que em breve tenham uma deputada nacional que represente a comunidade trans.

Qual a importância das eleições do Brasil neste ano para a região? Uma vitória de Bolsonaro seria outro gesto no sentido do avanço conservador, que deve ser freado. Ele tem sido uma liderança nociva para a região, quando precisamos ter uma voz unida frente ao mundo e dizer "ok, já basta de abusos".


Raio-X | Emilia Schneider, 25

Deputada no Chile eleita em 2021 pelo partido Comunes, de esquerda, foi uma das protagonistas dos protestos feministas em 2018 e presidiu a Federação de Estudantes da Universidade do Chile (FECh).

Emilia Schneider na Virada ODS

  • Quando Sábado (9), às 17h30
  • Onde Palco Igualdade de Gênero, no Pavilhão da Bienal do Parque Ibirapuera
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