Boris Johnson renuncia no Reino Unido após escalada de crises

Premiê cede a pressão depois de protagonizar escândalos, mas deve continuar no poder até nova eleição

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Boris Johnson entra em Downing Street, a sede do governo, após discurso de renúncia Henry Nicholls - 7.jul.22/Reuters

São Paulo

Boris Johnson, o primeiro-ministro do Reino Unido que ascendeu ao poder por meio de uma imagem de bufão, com os cabelos organizadamente desorganizados e gravatas tortas, renunciou nesta quinta (7).

Em meio a uma avalanche de crises e abandonado por aliados, ele indicou que permanecerá no cargo até que um novo líder do Partido Conservador seja escolhido —o que deve acontecer nos próximos meses—, ainda que o movimento seja rechaçado pela oposição trabalhista e por alguns membros de sua legenda.

"O processo de escolha de um novo líder deve começar", disse Boris em frente ao número 10 de Downing Street. "E hoje indiquei um novo gabinete para governar, assim como eu farei até a escolha acontecer."

O premiê do Reino Unido, Boris Johnson, anuncia renúncia em frente a Downing Street, em Londres
O premiê do Reino Unido, Boris Johnson, anuncia renúncia em frente a Downing Street, em Londres - Justin Tallis/AFP

Críticos haviam especulado que a derrocada aconteceria antes, mas, resistente, Boris sobreviveu a uma série de crises, e a saída agora se deve menos a um caso específico, mas ao acúmulo das controvérsias.

Do negacionismo diante do surgimento da Covid à descoberta de que sabia e nada fez para tirar um hoje acusado de assédio sexual da tarefa de garantir a disciplina parlamentar de seu partido, o ex-premiê deixa o cargo impopular e constrangido por aliados, como a debandada em série de seu governo mostra.

Nos últimos dias, dois secretários de peso, Rishi Sunak e Sajid Javid, das Finanças e de Saúde, puxaram a fila de renúncias, seguida por mais de 50 membros de sua gestão. A pressão cresceu na quarta (6), quando um grupo de pessoas próximas a ele, entre as quais outros ministros, foi até Downing Street para pedir que Boris enfim cedesse, encerrando um período de quase três anos à frente do Reino Unido.

Em seu discurso de renúncia, Boris disse que há uma espécie de instinto de rebanho poderoso em Londres. "Na política, ninguém é nem remotamente indispensável, e nosso sistema brilhante trará outro líder, igualmente comprometido em levar este país adiante em tempos difíceis", seguiu ele, que também pediu que a população se lembrasse do quão triste estava por deixar "o melhor emprego do mundo".

Eleito para entregar o brexit, a separação dos britânicos da União Europeia, o conservador cumpriu a promessa. Também foi o primeiro líder no mundo a entregar vacinas contra o coronavírus à população, numa virada que chegou a apagar os trancos iniciais, quando demorou a decretar lockdown e outras restrições, levando o país a ser um dos mais atingidos pela pandemia no continente.

Mas, de todos os rótulos, o que mais grudou foi o de mentiroso. O "partygate", episódio no qual vazamentos em série revelaram festas na sede do governo num momento da Covid em que os ingleses estavam proibidos de se reunir em ambientes fechados, deixou explícita a maior crítica feita pela oposição e até por membros de seu partido, a de que negava fatos que sempre se revelavam verdadeiros.

Foram dezenas de comemorações, de festa de Natal a festa de aniversário —do próprio premiê. Funcionários do gabinete chegaram a realizar um convescote na véspera do funeral do príncipe Philip (1921-2021), o que depois gerou um pedido de desculpas de Boris à rainha Elizabeth 2ª.

A fritura também abrigou uma reforma feita na residência oficial por meio de doação privada não declarada e até a acusação de que, durante a retirada do Afeganistão, após a retomada do poder pelos extremistas do Talibã, seu governo priorizou o transporte de cães e gatos em vez do de civis, polêmicas que passaram a ser acompanhadas de derrotas eleitorais em redutos tradicionalmente conservadores.

Pouco mais de um mês atrás, Boris escapou de um voto de desconfiança. Precisava do apoio de 180 dos 359 parlamentares de sua sigla —obteve 211 votos, mas viu 148 correligionários se posicionarem contra ele, prenunciando uma vitória de Pirro. Em tese, a conquista garantiria um ano sem que ninguém pudesse acionar o mecanismo para derrubá-lo outra vez, mas bastou uma nova crise para que especulassem uma revisão das regras. Só a ameaça de uma nova votação acabou impulsionando a renúncia.

Nascido em Nova York, Alexander Boris de Pfeffel Johnson, 58, o primeiro-ministro que levou o brexit a cabo, passou o final da infância e o começo da adolescência em Bruxelas, onde fica a sede da União Europeia. Filho de um ex-funcionário da Comissão Europeia, aprendeu a falar francês e sabe também alemão, italiano e espanhol, além de ter estudado latim e grego, que por vezes usou em citações.

Ainda que tenha chegado ao poder na onda de populistas de direita, ao fim não tinha muitas semelhanças com o ex-presidente americano Donald Trump, a quem analistas costumavam relacioná-lo. Além do perfil intelectualizado, não é moralista, não discrimina pessoas LGBTQIA+ e já admitiu ter experimentado maconha e cocaína, ou seja, diverge frontalmente da pauta de comportamento conservadora.

Antes de se tornar futuro ex-primeiro ministro, formou-se na Universidade de Oxford, e, em 2001, deixou uma longa carreira como jornalista e escritor para ser eleito deputado. Depois, entre 2008 e 2016, foi prefeito de Londres e, na sequência, por dois anos, chanceler do governo de Theresa May, a quem sucedeu.

Durante seu mandato, a política externa, em especial nos últimos cinco meses, foi um traço forte de Boris, que por vezes usou a Guerra da Ucrânia como escudo para desviar das crises. Um dos líderes mais vocais contra a Rússia de Vladimir Putin, visitou Kiev duas vezes, prometeu armas e ajuda ao país ora invadido.

Mal os rumores de que ele iria renunciar surgiram na imprensa, Moscou se apressou para afirmar, por meio de seu porta-voz, Dmitri Peskov, esperar que "pessoas mais profissionais, que decidam pelo diálogo," assumam o poder no Reino Unido. "Ele não gosta de nós, nós não gostamos dele."

Agora, qualquer que seja o novo premiê britânico, é muito improvável que a posição britânica vá mudar, mas o líder ucraniano, Volodimir Zelenski, perde um aliado que quase nunca vacilou em demonstrar apoio. "Ao povo da Ucrânia digo que eu sei que nós, no Reino Unido, continuaremos apoiando sua luta pela liberdade pelo tempo que for necessário", afirmou Boris nesta quinta.

De forma um pouco mais comedida, ele também foi crítico da China, chamando-a de "desafio sistêmico" ao anunciar a estratégia de segurança, defesa, desenvolvimento e política externa do país em 2021. A preocupação ficou mais visível no Aukus, parceria entre Austrália, Reino Unido e EUA para garantir à nação na Oceania submarinos nucleares numa área em que Pequim quer aumentar sua influência.

No plano doméstico, Boris renuncia no momento em que ventos independentistas voltam a soprar da Escócia e com o Protocolo da Irlanda, fruto do divórcio entre UE e Reino Unido, ainda a resolver. O resultado da contenda em torno do mecanismo para evitar uma "fronteira dura" entre as Irlandas pode azedar de vez a relação do Reino Unido com o bloco europeu, sinal de que o brexit deixou cicatrizes.

Em meio a tantas questões e escândalos, por muito tempo Boris foi visto como um sobrevivente. Em seu governo, foi de fato um. Chegou a ir para a UTI após ser contaminado pela Covid. Depois, permaneceu no poder até quando todos já davam a derrota como certa. Ficou mais do que os críticos imaginavam e menos do que o seu alter ego no romance que escreveu, "Seventy Two Virgins", conseguiu.

Na obra, o personagem triunfa ao tentar ofuscar as más notícias que o aguardavam. Para Boris, não deu.


Linha do tempo | Boris Johnson

  • 1964 Nasce em Nova York, onde os pais estudavam, mas com pouco tempo de vida vai viver no Reino Unido; manteve dupla cidadania até 2006, quando renunciou à identidade americana
  • 1983 Cursa estudos clássicos na Universidade de Oxford
  • 1987 Começa a trabalhar como jornalista. Nos anos seguintes, passaria por diversos veículos da imprensa britânica, como Times, Daily Telegraph e Spectator, ocupando posições como correspondente internacional, colunista e editor, inclusive após ser eleito deputado
  • 2001 a 2008 Deputado pelo Partido Conservador
  • 2008 a 2016 Prefeito de Londres, estava no cargo quando a capital sediou as Olimpíadas de 2012; foi reeleito para um segundo mandato e deixou o comando da cidade com 52% de aprovação, contra 29% de desaprovação, segundo o YouGov
  • 2015 Volta a ser eleito deputado pelo Partido Conservador e faz campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia; após deixar a Prefeitura de Londres, é nomeado Secretário do Exterior no governo Theresa May, cargo que ocupa até 2018
  • 2019 Eleito primeiro-ministro após a renúncia de May, convoca novas eleições no fim do ano e garante ampla maioria ao Partido Conservador no Parlamento; com a nova configuração do Legislativo, leva a cabo o brexit após sucessivos adiamentos
  • 2020 e 2021 Resiste a impor medidas restritivas para conter a Covid-19 até ele próprio ser contaminado pela doença, no fim de março de 2020, e internado na UTI; com as flutuações do cenário pandêmico, impõe lockdowns no país ao longo dos meses seguintes
  • nov.2021 Daily Mirror publica as primeiras reportagens acusando Boris de quebrar regras de restrições da pandemia. Outros jornais entram no caso e o premiê passa a ser questionado até no próprio partido. Nos meses seguintes, pede desculpas ao Parlamento, mas nega que irá renunciar
  • 2022 Polícia investiga festas em período de lockdown e multa premiê. Eclosão da Guerra na Ucrânia em fevereiro tira o "partygate" do foco do noticiário, mas conclusão de relatório em maio traz de volta o assunto aos jornais
  • 6.jun.2022 Oposição a Boris dentro do Partido Conservador consegue levar moção de desconfiança ao Plenário, mas primeiro-ministro obtém maioria dos votos e permanece no cargo
  • 30.jun.2022 Articulador do governo no Congresso renuncia após denúncias de assédio sexual. A reação inicial do governo, de considerar o caso "encerrado" após a renúncia, provocou uma avalanche de demissões no alto escalão da administração britânica nos dias seguintes
  • 7.jul.2022 Pressionado pelas sucessivas crises, renuncia ao cargo de primeiro-ministro
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