Buenos Aires proíbe linguagem de gênero neutro em escolas e abre batalha com ativistas

Sob críticas do ministro da Educação, medida é alvo de ações judiciais

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Ana Lankes
Buenos Aires | The New York Times

Em vez de "amigos" ou "amigas", alguns falantes de espanhol usam "amigues". No lugar de "todos" ou "todas", escrevem "todxs". E certas placas que diziam "bienvenidos" agora dizem "bienvenid@s".

As mudanças, adotadas informalmente por professores de escolas de Buenos Aires, a capital argentina, são um esforço deliberado para incluir pessoas que não se identificam como homem ou mulher em um idioma no qual muitas palavras são categorizadas como masculinas ou femininas.

A linguagem de gênero neutro está sendo cada vez mais adotada na América Latina, em espanhol ou em português, e também em lugares que usam inglês ou francês, por apoiadores que dizem que ela ajuda a criar uma sociedade mais inclusiva. Para alguns falantes de espanhol, porém, incluindo acadêmicos e políticos, as mudanças degradam o idioma usado por 500 milhões de pessoas no mundo.

As ativistas LGBTQIA+ Agostina Fernández Tirra e Luana Pereyra exibem cartaz com defesa da linguagem de gênero neutro em frente à escola em que estudam, em Buenos Aires - Sarah Pabst/The New York Times

Na Argentina, a tensão passou de uma guerra de opinião pública para uma batalha política. No mês passado, a prefeitura de Buenos Aires proibiu os professores de usarem palavras de gênero neutro durante as aulas e nas comunicações com os pais. A secretária de Educação local disse que essa linguagem viola as regras do espanhol e atrapalha a compreensão de leitura dos alunos.

A política, uma das primeiras a proibir o uso de linguagem neutra em termos de gênero, provocou reações rápidas. O ministro da Educação, Jaime Perczyk, criticou a regra, e ao menos cinco ONGs —uma mistura de grupos de direitos LGBTQIA+ e de direitos civis— entraram com ações judiciais para derrubá-la.

Perczyk comparou a medida às proibições contra a escrita com a mão esquerda sob a ditadura fascista de Francisco Franco, na Espanha. "Eles pensavam estar corrigindo alguma coisa, mas é muito mais profundo", diz, explicando que os estudantes usam a linguagem neutra como ferramenta para combater atitudes sexistas predominantes na cultura argentina.

Nas línguas românicas, incluindo espanhol, francês, italiano e português, o debate sobre terminologia neutra pode ser particularmente acirrado porque toda a gramática é baseada em gêneros. Em um relatório de 2020, a Academia Real Espanhola, considerada por muitos a guardiã da língua, descreveu o uso de "e", "@" e "x" no lugar de "o" ou "a" finais como "alienígena à morfologia do espanhol".

No ano passado, o ministro da Educação da França recomendou evitar a escrita inclusiva nas comunicações da pasta e nas escolas, e um importante dicionário francês provocou indignação em outubro ao acrescentar "iel", pronome singular de gênero neutro, às suas palavras.

O debate também se tornou parte de uma guerra cultural emergente na América Latina. Em dezembro, a agência de educação pública do Uruguai emitiu um memorando limitando o uso da linguagem inclusiva, para ficar "de acordo com as regras da língua espanhola".

A pressão por mudanças nas línguas românicas teve origem entre as feministas, pelo menos na década de 1970, que desafiaram o uso do masculino genérico, uma regra gramatical em que a forma masculina tem precedência quando alguém se refere a um grupo de pessoas se ele incluir ao menos um homem. Em espanhol, cinco meninas são "las niñas", mas quando um menino entra o grupo passa a ser "los niños".

"Na França, em vez de usar 'chers étudiants', forma masculina de 'queridos alunos', as feministas promoveram o uso de formas duplas que incluíam a versão feminina, como 'chers étudiants et chères étudiantes'", diz Heather Burnett, linguista da Agência Nacional de Pesquisa da França.

Hoje, uma nova onda de ativistas está indo mais longe. Muitas pessoas transgênero querem apagar completamente os termos gramaticais de gênero. Em vez de usar "queridos alunos e queridas alunas", elas preferem usar "querides alunes".

O movimento em torno da linguagem, segundo alguns especialistas, faz parte de uma contestação mais ampla do modo como a sociedade percebe o gênero. "Com pessoas não binárias, a linguagem é apenas a ponta do iceberg", afirma Rodrigo Borba, professor de linguística aplicada na Universidade Federal do Rio de Janeiro. "O que eles estão questionando em um nível ideológico mais profundo é que o gênero não está conectado à sua genitália e que não existe apenas em pares."

A Argentina é um lugar surpreendente para um debate tão acalorado sobre linguagem de gênero neutro, porque o país abraçou amplamente os direitos das pessoas trans. Em 2012, tornou-se um dos primeiros países do mundo a aprovar uma lei que permite que elas modifiquem o gênero em documentos oficiais sem a necessidade da intervenção de um médico ou de um psicoterapeuta.

No ano passado, o governo exigiu que 1% de todos os empregos estatais fossem reservados a pessoas trans. Quem se identifica como não binário pode marcar um "X" em documentos oficiais, em vez de masculino ou feminino. Dyzhy, filho do presidente, identifica-se como não binário, e a coalizão de Alberto Fernández mudou o logo para evitar a forma masculina —um sol substituiu o "o" da Frente de Todos.

Soledad Acuña, Buenos Aires?s education minister, in Buenos Aires, Argentina, on June 30, 2022. Acuña said that gender-neutral language violated the rules of Spanish and stymied students? reading comprehension. (Sarah Pabst/The New York Times)
Soledad Acuña, secretária de Educação de Buenos Aires, em seu gabinete - Sarah Pabst/The New York Times

Em Buenos Aires, a secretária municipal de Educação, Soledad Acuña, diz que a nova regra sobre a linguagem inclusiva não pretende ser uma proibição. "A linguagem em si não é nem mais nem menos inclusiva. Tudo depende de como as pessoas a usam." No mesmo dia em que a regra foi adotada, segundo ela, a secretaria publicou vários guias sobre como ser inclusivo usando a gramática tradicional. Eles sugerem, por exemplo, escrever "los/las estudiantes" ou usar palavras neutras como "personas".

Não está claro que influência, se houver, a linguagem de gênero neutro tem na compreensão da leitura, segundo Florencia Salvarezza, neurocientista que trabalha com cognição, porque pouca ou nenhuma pesquisa foi feita sobre o assunto. Mas, ela acrescenta, é plausível que a linguagem neutra possa complicar o aprendizado. "Não há como criar uma sílaba em espanhol com o 'x' ou o '@', porque não são vogais. Isso pode confundir as crianças pequenas", diz.

Ainda assim, defensores acreditam que, apesar da regra, o uso de linguagem neutra em termos de gênero continuará se expandindo. "Você não pode proibir algo que já é tão usado", diz Alexandra Rodríguez, voluntária em um centro comunitário. "A linguagem é algo que está sempre sendo modificada. Está viva porque estamos vivos —e continuará mudando."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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