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Nova Constituição da Tunísia dá superpoder a presidente e ameaça direitos, diz opositora

Em meio a boicote a Kais Saied, referendo tem só 27% de participação; temor de autoritarismo cresce

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São Paulo

Com comparecimento apático, a Tunísia aprovou nesta segunda-feira (25) uma reforma constitucional que concentra ainda mais o poder nas mãos do presidente, Kais Saied.

Segundo as autoridades eleitorais, 94,6% da população votou no "sim". Esse resultado preliminar é positivo para o governo, só que é também azedado por um sinal de protesto: apenas 27% do país foi às urnas. A baixa participação indica o desinteresse e o boicote dos tunisianos, que preferiram ir à praia no feriado do Dia da República e lotaram a costa mediterrânea. Como comparação, nas eleições legislativas de 2014, 62% da população votou; a participação no pleito legislativo de 2019 foi de 41%.

O fato de que apenas um quarto dos eleitores foi às urnas significa que, do ponto de vista legal, há dúbia legitimidade para uma alteração tão drástica em como o país funciona. A nova Constituição muda o sistema político tunisiano, afinal. O país deixa de seguir o modelo parlamentar misto atual —ou seja, com um presidente e um premiê— e adota um modelo presidencial.

O presidente Kais Saied celebra com apoiadores em Túnis a aprovação da proposta de nova Constituição
O presidente Kais Saied celebra com apoiadores em Túnis a aprovação da proposta de nova Constituição - Anis Mili/AFP

Saeid poderá governar por decreto até que o país eleja um novo Parlamento, algo previsto para ocorrer em dezembro. Ele terá poder sobre os congressistas e escolherá, inclusive, o primeiro-ministro. Soma-se a isso o fato de que, há dois meses, o presidente tomou para si a prerrogativa de demitir juízes. Na prática, ele vai reunindo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no posto.

"Não reconhecemos o resultado", diz a parlamentar Sayida Ounissi, do partido islamita de oposição Ennahda. Ela defende que o processo foi irregular, inclusive porque Saied nomeou membros do comitê eleitoral e controlou a cobertura da imprensa. "A nova Constituição dá superpoderes ao presidente, sem ninguém para controlá-lo. É uma ameaça aos nossos direitos civis."

A consulta tem sido seguida de perto por observadores internacionais, e Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado americano, expressou preocupação quanto à concentração de poderes na Presidência, que "pode comprometer a proteção dos direitos humanos". Price mencionou também o limitado diálogo e a pouca transparência durante a redação da nova Constituição.

O receio expressado dentro e fora da Tunísia é de que essa nação de fala árabe esteja regressando ao autoritarismo que tinha abandonado há mais de dez anos. Em outras palavras, é um passo atrás, dado justamente pelo país que primeiro acendeu a onda de protestos mais tarde conhecida como Primavera Árabe.

Manifestações populares derrubaram em 2011 o ditador Zine El Abidine Ben Ali, que estava no poder havia mais de duas décadas, desencadeando protestos que derrubaram também os governos do Egito, da Líbia e do Iêmen —esses três países, porém, foram rapidamente tragados de volta a sistemas instáveis. Na Síria, os atos foram reprimidos com tamanha violência pelo ditador Bashar al-Assad que o país entrou numa guerra civil até hoje insolúvel.

Mesmo na Tunísia a experiência democrática tem tido seus solavancos desde então. O país vive uma dura polarização entre partidos seculares e religiosos desde a revolução. A eleição de Saied em 2019 foi justamente resultado da crescente insatisfação com os partidos políticos, vistos como corruptos e ineficazes por alguns setores. Populista, Saied se apresenta ao povo como alguém vindo de fora do sistema e capaz de, por fim, resolver as crises desse país.

Em 2021, em meio à severa crise da Covid-19 e a subsequente piora na economia, o presidente dissolveu o governo e suspendeu as atividades parlamentares. Seus muitos oponentes o acusaram de dar um golpe com base na alegação de que o país vive uma situação de emergência.

Saied justificou sua proposta de reforma da Constituição como uma maneira de simplificar um sistema político complicado demais e de dar ao presidente os poderes necessários para transformar o país com rapidez. "Ele derrubou as instituições e concentrou o poder em suas mãos", diz Chaima Aissa, cofundadora do movimento da sociedade civil Cidadãos Contra o Golpe. "A nova Constituição é um retrocesso, em um país no qual havia separação de Poderes. É natural que a gente esteja desapontado."

O receio, agora, é de que o governo persiga dissidentes e impeça protestos contra a reforma. Ounissi conta que já foi proibida de deixar o país nas últimas semanas. "Não tememos apenas voltar ao que tínhamos antes de 2011. Pode ser pior. Naquele tempo, a Tunísia tinha uma sociedade civil, um Judiciário que resistia ao ditador. Agora, Saied diz claramente: 'sou tudo, e tudo está sob mim'."

Mesmo alguns dos especialistas que participaram da escrita do projeto de reforma constitucional foram a público dizer que o texto dá margem ao retorno da Tunísia à ditadura. O presidente já tinha avisado, porém, que iria implementar as mudanças constitucionais mesmo que pouca gente fosse às urnas nesta segunda.

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