Violência armada é praticamente nula no Japão, onde acesso a armas é dificultado

País asiático exibe taxa de 0,25 homicídios por 100 mil habitantes; ex-premiê foi morto a tiros

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São Paulo

Uma maneira comum de calcular a taxa de assassinatos em um lugar é dividir o total de homicídios por 100 mil habitantes. Por essa conta, o índice no Brasil, por exemplo, é de 22,3 mortes por 100 mil pessoas. O cálculo costuma ser útil para facilitar a comparação entre diferentes países. Mas não no Japão.

Isso porque o número de homicídios como o do ex-premiê Shinzo Abe, ocorrido nesta sexta-feira (8), é tão baixo que pelo menos desde 2006 a taxa de assassinatos por 100 mil pessoas pode ser arredondada para 0. Ou, para ser mais exato, 0,25, segundo dado mais recente compilado pelo Banco Mundial, de 2020.

Em termos concretos, em 2020, 318 pessoas foram assassinadas no Japão. No mesmo ano, 50 mil pessoas foram mortas no Brasil. O dado japonês é do GunPolicy.org, projeto da Universidade de Sidney que monitora o acesso a armas pelo mundo. A entidade aponta também que, em 2018, número mais recente do levantamento, nove pessoas foram assassinadas a tiros no país, como Abe.

De acordo com a Agência de Polícia Nacional do Japão, o país registrou ao longo de todo o ano passado dez incidentes com armas de fogo, e apenas um deles deixou uma pessoa morta.

Policiais patrulham área onde ex-premiê do Japão foi alvo de atentado nesta sexta-feira - Kyodo via Reuters

Para Pedro Brites, especialista em Ásia e professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, o ataque "é chocante para toda a sociedade japonesa não só pela representatividade que Abe tem, mas pelo fato de ser um assassinato a tiros em público, no meio de um discurso político".

Desde que foi derrotado na Segunda Guerra Mundial, quando lutou ao lado da Alemanha nazista e da Itália fascista, o Japão passou por um processo de desmilitarização —chegou a ser proibido de ter exército— e caminhou para uma pacificação da sociedade. Nos últimos anos, sobretudo com o aumento das tensões com a China na região, o país vinha investindo cada vez mais na segurança externa, mas ainda mantinha restrições severas para controlar o acesso a armas internamente.

De acordo com o GunPolicy.org, o Japão proíbe a posse de armas automáticas, semiautomáticas e revólveres para civis. Já rifles e espingardas são autorizados em casos especiais para caça ou coleção, mas quem requisita essa licença precisa passar por checagens de antecedentes criminais, de saúde mental e de registros de vício em drogas. Também é preciso fazer cursos teóricos e práticos para aprender a usar o equipamento —nos quais é preciso alcançar um mínimo de 95% de precisão nas aulas de tiro.

Além disso, se houver histórico de violência doméstica na família, a licença pode ser cassada. Cada registro permite a posse de uma arma, mas não há restrição de munição. Depois que a licença é obtida, é preciso informar às autoridades onde a arma será guardada, e o local, que será inspecionado pelas autoridades, deve ficar trancado. Já o porte de armas ostensivo em locais públicos é proibido.

O assassinato de Abe, no entanto, não foi feito com uma arma convencional, segundo o que se sabe do caso até agora. De acordo com a imprensa local, o armamento usado no crime é de fabricação caseira.

Para Alysson Araldi Boschi, que estuda a segurança no país asiático na Universidade Federal de Santa Catarina, o fato de o agressor ter que recorrer a uma arma caseira ilustra a maneira como o Japão lida com a criminalidade há séculos. No século 17, lembra ele, o país adotava uma política rígida para lidar com o crime, com um sistema de punições coletivas em que parentes ou vizinhos eram penalizados pelas infrações de um indivíduo. "O Japão sempre teve tolerância zero", afirma, citando índices de condenação que superam os 99% de quem é processado. "O sistema judiciário é extremamente dissuasivo."

Para ele, o assassinato foi um ponto fora da curva e não deve sinalizar uma tendência de aumento da violência política, ainda que o episódio tenha levantado preocupações com a segurança de autoridades.

Abe foi baleado quando conversava com centenas de eleitores na porta de uma estação de trem, sob a escolta de apenas um policial armado especializado, segundo o canal de TV Nippon, além de agentes locais da cidade de Nara, onde o crime ocorreu. "Qualquer um poderia tê-lo atingido daquela distância", disse Masazumi Nakajima, um ex-detetive, à TV japonesa. "Ele precisava estar coberto por todos os lados", afirmou Koichi Ito, especialista em segurança ao canal de TV NHK.

Isso porque, ainda que o Japão esteja entre os lugares mais seguros do mundo, o país também tem em sua história recente outros ataques contra políticos, como a tentativa de golpe de Estado em 1936 que matou dois ex-premiês. Até um tio-avô de Abe, Nobusuke Kishi, primeiro-ministro entre 1957 e 1960, foi esfaqueado a dias de deixar o poder, quando saía da residência oficial —ele sobreviveu ao atentado.

No mesmo ano, Inejiro Anasuma, líder do Partido Socialista, foi morto por um militante ultranacionalista com uma espada samurai. Em 1978, dias após ser eleito premiê, Masayoshi Ohira foi alvo de um atentado a faca por um militante da direita, mas o agressor foi interceptado antes de chegar ao primeiro-ministro.

Para Mateus Nascimento, do Centro de Estudos Asiáticos da Universidade Federal Fluminense, a história do Japão registra "uma série de atentados de ultranacionalistas e ultraconservadores contra grupos de esquerda e direita quando você tem insucessos políticos". Ele não descarta que este seja o caso de agora.

Antes de Abe, o mais recente assassinato a tiros de um político no país havia ocorrido em 2007. O prefeito de Nagasaki, Iccho Itoh, foi morto por um membro da Yakuza durante a campanha de reeleição.

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