Afeganistão ficou no passado, diz analista um ano após retirada de tropas dos EUA

Pesquisador avalia saída como decisão acertada, apesar de caótica, e vê terrorismo doméstico como ameaça maior

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Washington

O Afeganistão está no retrovisor dos Estados Unidos, segundo Aaron David Miller, ex-conselheiro do Departamento de Estado americano.

Um ano após a caótica retirada de tropas do Ocidente do país, o analista defende que a saída, por mais problemática que tenha sido, foi uma decisão acertada do governo Joe Biden.

À Folha ele defende que a ascensão da China e o terrorismo doméstico de nacionalistas brancos são uma ameaça mais imediata que grupos jihadistas e diz que os EUA mantêm capacidade de promover ataques a distância, como mostrou a operação que matou o líder da Al-Qaeda Ayman al-Zawahiri em julho.

Soldado americano em helicóptero sobrevoa Cabul meses antes da retirada das tropas americanas do Afeganistão - Jim Huylebroek - 2.mai.21/The New York Times

Um ano atrás os EUA e aliados encerraram uma ocupação de 20 anos no Afeganistão. A saída terminou com americanos mortos, um ataque a civis identificados de forma errada como membros do Estado Islâmico. O Talibã tomou o controle e agora um líder da Al Qaeda foi encontrado vivendo em Cabul. A retirada de tropas foi a coisa certa a se fazer? Na minha visão, sim. Eu deixei o governo três meses antes de invadirmos o Iraque, em março de 2003. Na época já me parecia claro que seria uma ocupação permanente dos EUA, que deveria ser uma missão de contraterrorismo para evitar outro 11 de Setembro, prevenir que terroristas que atuassem contra os interesses americanos se fincassem na região.

Depois, nossos objetivos, como consequência da nossa presença, começaram a ser inflados. Apesar das negativas dos governos Bush, Obama e Trump de que estávamos fazendo uma operação de "construção de nação", a realidade é que para eliminar insurgências tentou-se desenvolver um governo minimamente funcional, que controlasse a segurança e fosse capaz de desenvolver a economia e dar benefícios sociais.

Na minha visão, isso foi imperdoável. Eu não consigo identificar um único exemplo desde 1945 em que os EUA, projetando uma força militar maciça, ocuparam outro país e tiveram resultados positivos. A Alemanha e o Japão [após a Segunda Guerra] foram exceções.

Os EUA perderam a guerra? O padrão de sucesso no Afeganistão nunca foi a vitória, mas quando iríamos sair. Então, quando Biden —cujas visões sobre construir uma nação no Iraque e no Afeganistão sempre foram céticas e não ideológicas— toma a decisão pouco após assumir, parecia a coisa certa. Mas se os republicanos formarem maioria na Câmara devem instaurar comissões para investigar a retirada.

Existe também um problema ético. Fizemos compromissos, criamos expectativas. Na verdade, acho que fizemos muitas coisas boas, principalmente no que diz respeito à garantia de direitos para mulheres e meninas. Mas é verdade que foi uma missão fracassada. Temos um telhado de vidro maior do que nunca agora. Nosso sistema político doméstico está sob grande estresse, alguns diriam que já foi destruído.

Em 20 anos não foi possível encontrar uma maneira melhor de sair? Não tenho essa resposta. Claramente os militares estavam empenhados em tentar vencer, não queriam admitir que perderam. E a realidade é que não podíamos e não pudemos controlar as forças políticas e sociais que continuaram a operar no país. Você tinha corrupção no governo central, divisões étnicas, faltava qualquer tipo de coesão nacional.

E um dos fatores mais importantes é que não foi possível eliminar o santuário [de grupos jihadistas] em partes do Paquistão, que o governo paquistanês também não conseguia controlar. Se o governo central que você apoia é visto como corrupto e incompetente e do outro lado da fronteira você tem atividade [jihadista], a noção de uma operação bem-sucedida estava muito distante.

Acho que nenhuma grande potência teria sido capaz de conquistar algo. Todo o Oriente Médio é literalmente o que sobrou de grandes potências que acreditavam que poderiam impor sua vontade sobre como as pessoas deveriam se organizar e viver. É a história da grande frustração.

Não tenho certeza de que havia qualquer outro jeito de sustentar um governo funcional que tivesse legitimidade e capacidade para sustentar o país. Apesar de suas divisões próprias, o Talibã é a força política mais forte e legitimada do país. Acredito, porém, que para cumprir nossos compromissos com os afegãos que trabalharam para os EUA poderíamos ter nos planejado mais, muitas das cenas de caos poderiam ter sido diferentes.

A retirada não deixou os EUA mais vulneráveis ao terrorismo? A ameaça jihadista não é mais imediata e iminente. Construímos uma estrutura contraterrorismo, não tivemos mais um 11 de Setembro. Acho que talvez estejamos menos sujeitos a prever um ataque do Afeganistão porque não temos agentes em solo. E a ameaça terrorista evoluiu muito. Bin Laden talvez ficasse impressionado ao ver como grupos jihadistas se espalharam pela África e pela Ásia.

E qual o significado do ataque contra Zawahiri? A operação mostrou grande confiança, capacidade de realizar operações a distância. Mas não é o mesmo que desmobilizar toda uma célula que está planejando um ataque. Na guerra contra o terrorismo, o ataque foi um símbolo. Mas não mais que isso.

A saída, como foi, enfraquece a imagem dos EUA no mundo? Muitos críticos diziam que a saída caótica mostrava a aliados que os EUA jamais poderiam liderar o mundo de novo, que seus rivais estouraram champanhe. Mas após a saída do Vietnã, com aquelas imagens terríveis da retirada da embaixada em 1975, em 15 anos os EUA já eram a única superpotência do mundo. Os EUA têm a capacidade de liderar de novo. Estamos passando por uma situação muito específica, com a ascensão da China, com a Rússia.

O analista Aaron David Miller - Divulgação U.S. Institute of Peace

O Talibã pode ser uma ameaça à paz global? O Talibã não vai montar uma campanha extensa para garantir que a Al-Qaeda não opere do país. Mas o grupo é muito mais agressivo em relação, por exemplo, ao Estado Islâmico Khorasan, porque compete com eles por dinheiro e recrutas. O terrorismo não é o principal problema de política externa que os EUA enfrentam hoje. Hoje a ameaça é interna, e acho que mudou —é a ascensão de grupos de nacionalistas brancos extremamente violentos.

Qual o lugar do Afeganistão na política externa dos EUA hoje? Está no retrovisor. Governar é estabelecer prioridades. Acho que vamos continuar dedicando recursos e atenção à situação humanitária lá, mas não ocupa o mesmo lugar diante da ascensão da China.


Raio-x | Aaron David Miller

Especialista-sênior do Carnegie Endowment for International Peace, trabalhou como negociador, analista e conselheiro do Departamento de Estado dos EUA de 1978 a 2003, com foco sobretudo em Oriente Médio

Os dois momentos do Talibã no poder

  1. 1996

    26.set | Rebeldes do Talibã tomam o controle de Cabul, matando o então presidente

  2. 2001

    8.out | Depois do 11 de Setembro, Talibã nega a extradição de membros da Al-Qaeda; George W. Bush declara guerra ao terror e envia tropas ao Afeganistão 7.dez | EUA apontam Hamid Karzai como presidente

  3. 2006

    Talibã ganha força e retoma territórios no sul

  4. 2014

    Afeganistão assume operações militares; Otan e EUA passam a ter papel de treinamento e apoio 27.mai | Barack Obama anuncia plano para retirada gradual das tropas

  5. 2015

    Talibã conquista mais territórios, e Estado Islâmico passa a ganhar força

  6. 2017

    Donald Trump bombardeia instalações do EI e anuncia aumento da presença militar

  7. 2020

    29.fev | EUA e Talibã encaminham retirada das tropas, no Acordo de Doha

  8. 2021

    14.abr | Joe Biden determina saída das tropas para 11.set 14.ago | Talibã retoma províncias, e EUA iniciam retirada de funcionários 16.ago | Talibã conquista Cabul e chega ao poder 31.ago | Último soldado dos EUA deixa o país

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