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Chile debate acesso à água a duas semanas de plebiscito de nova Constituição

Nova Carta propõe fim da privatização do recurso; pesquisas indicam rejeição ao texto

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Buenos Aires

Quem já foi ao Chile sabe que um dos ingredientes mais comuns na dieta é o abacate. Creme de abacate com pão tostado de manhã, abacate com salmão, sanduíche de abacate e peito de peru —as receitas são infinitas. A fruta também representa 60% da produção agrícola do país e está entre os principais produtos de exportação.

A principal região produtora, porém, vive uma situação complexa. Há décadas, praticamente toda a água que flui na província de Petorca pertence, por concessão vitalícia, às empresas que cultivam abacate para venda interna ou exportação. Não há água local para a população, que recebe regularmente a visita de caminhões-pipa para encher o reservatório das casas. Para consumo próprio, os habitantes devem comprar garrafas de água mineral, que vêm de outras cidades, encarecendo o custo de vida na região.

Esse sistema de outorga de concessões hereditárias para o uso da água no agronegócio foi estabelecido pelo Código de Águas, promulgado no mesmo ano da Constituição que hoje rege o Chile, em 1981, durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Trata-se de um sistema que não existe em outros países.

Lago Aculeo, em meio a seca, na região de Paine, no Chile - Martin Bernetti - 6.mai.22/AFP

A duas semanas do plebiscito obrigatório que definirá se os chilenos aprovam ou rejeitam a nova Constituição, a questão da água surge como uma das mais divisivas. A Carta, que vem sendo redigida desde julho de 2021, após a eleição de 154 legisladores, precisa da aprovação popular no próximo dia 4 de setembro para ser implementada.

A última pesquisa do instituto Cadem mostra que está cada vez menor a diferença entre as opções. A rejeição ao texto tem hoje 46% das intenções, contra 38% da aprovação —que, num cenário mais estendido, apresenta certa recuperação, com alta de 4 pontos em relação à medição anterior, enquanto a rejeição permaneceu estável.

O presidente Gabriel Boric afirma que, caso o veto à nova Carta ganhe, o governo determinará que se volte a debater temas controversos ou mesmo o texto todo, do zero. Afinal, no plebiscito de 2021, decidiu-se abandonar a Constituição da época de Pinochet. A decisão do mandatário precisará ser referendada pelo Congresso.

Em relação à água, a atual legislação é manejada pelo Ministério de Obras e Estruturas, que concede permissões de uso vitalício das águas dos rios. "É uma visão elitista e ultrapassada, que manteve o recurso no domínio das grandes empresas de agronegócio, deixando em segundo plano o consumo da população e a irrigação de pequenas fazendas e sítios", diz à Folha María Christina Fragkou, geógrafa da Universidade do Chile.

A nova Carta, se aprovada, fará com que a administração da água seja transferida ao Ministério do Meio Ambiente; que seja criada uma agência reguladora; e que sejam revistas as concessões vitalícias —segundo analistas, além de criar uma divisão entre quem pode ou não ter acesso à água, elas abriram espaço para um comércio ilegal.

A gestão do recurso, então, não será mais centralizada. Como propõe a nova Constituição também para outros temas da administração, haverá uma regionalização da administração. Assim, áreas mais secas terão atenção distinta das mais bem irrigadas.

"A legislação anterior também não levou em conta que haveria menos água devido à crise climática, ao aumento da população, à falta de neve nos Andes que diminui o volume dos rios. Essas coisas serão mais bem administradas em um sistema em que se pense a água como parte do ambiente, com a preocupação de preservação", afirma Fragkou.

A ideia de rever concessões já distribuídas pelo Estado, porém, causa controvérsia entre os que as detêm.

Segundo um levantamento de 2020, dos mais de 29 mil proprietários de direitos sobre a água, 1% concentram 79% desse recurso. Isso se traduz em mais de 1 milhão de chilenos sem acesso a água potável e na dependência de caminhões-pipa, alternativa para centenas de municípios do interior do país. Críticos apontam que a água que chega por meio desses veículos nem sempre é limpa, com relato de casos de gastrites e outras doenças em postos de saúde regionais.

Além disso, o Chile vive uma seca inédita causada pelas transformações climáticas. Segundo dados do governo, mais de 76% do território vive hoje em "estresse hídrico" —ou seja, precisa de ajuda extra para satisfazer minimamente o consumo de água potável e para plantações. Em pronunciamento recente, Boric mencionou uma eventual necessidade de promover racionamento nas grandes cidades em breve.

Políticos de direita são contra a reforma do sistema de águas. "Essa é a maior expropriação de bens privados que vemos em muitos anos", disse o constituinte Rodrigo Álvarez, da UDI (União Democrata Independente).

Para Ariel Muñoz, do Centro para o Estudo do Clima, a queda da quantidade de chuvas e de neve é uma tendência. "Especialmente na região montanhosa do Chile, e uma tendência acelerada que levará, mais adiante, à desertificação dessas áreas. Se continuarmos extraindo água, as reservas vão terminar."

Ele vê como positiva a criação de uma Agência da Água que proponha soluções regionais vinculadas com o contexto ecológico de cada região.

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