Descrição de chapéu China Brics

ONU vê possível crime contra a humanidade em ação da China com uigures

Michelle Bachelet se despede de Alto Comissariado e cita graves violações de direitos humanos em relatório sobre Xinjiang

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São Paulo

A China cometeu graves violações de direitos humanos contra os uigures, minoria muçulmana que ocupa a região de Xinjiang, no oeste do país, segundo relatório do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas. O texto foi divulgado nesta quarta (31), a 11 minutos do fim do mandato de Michelle Bachelet à frente do órgão.

A ex-presidente chilena vinha sofrendo pressão de ONGs pela postura considerada amena em relação a Pequim. O documento teve origem em uma visita que ela fez, em maio, a Xinjiang —considerada tão histórica, pela falta de precedentes, quanto frustrante, por declarações exortando diálogo com a ditadura.

A China é acusada de reprimir e fazer detenções arbitrárias contra o povo uigur. O relatório dá credibilidade a alegações de "padrões condizentes com a prática de tortura" na região, pede urgente atenção da comunidade internacional e alerta para o risco de que, em operações "de contraterrorismo e combate ao extremismo" pelo regime, crimes contra a humanidade tenham sido cometidos.

Michelle Bachelet ganha flores de Federico Villegas, presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, durante sua despedida, em Genebra - Fabrice Coffrini - 31.ago.22/AFP

É incerto, porém, o impacto que ele terá para remediar críticas recentes à chilena. "Seu principal legado é e continuará a ser o fracasso em tomar medidas claras e necessárias sobre essa crise, particularmente na forma como atrasou a publicação do relatório sobre Xinjiang", diz à Folha Raphael Viana David, diretor do programa para a Ásia do Serviço Internacional de Direitos Humanos, baseado em Genebra. "Isso terá um impacto duradouro na confiança na capacidade do sistema da ONU de enfrentar infratores poderosos."

No relatório de 46 páginas divulgado nesta quarta, uigures relatam terem sofrido violências sexuais em campos de detenção. Além de casos de estupro, mulheres contaram que foram forçadas por guardas a realizar sexo oral no contexto de interrogatórios, obrigadas a tirar a roupa em outras ocasiões e a passar por exames ginecológicos invasivos.

Nenhum dos entrevistados afirmou à ONU que conseguiu sair das instalações —eles afirmam que havia presença ostensiva de guardas armados com revólveres ou bastões. Metade relatou que lhes eram permitidas visitas ocasionais ou telefonemas para um parente, apenas sob vigilância; a outra metade não tinha contato com a família. Dois terços reportaram terem sido submetidos a tortura.

O tempo de permanência nos campos daqueles ouvidos pelo órgão variou entre dois e 18 meses, e eles afirmaram não terem sido informados da duração de suas estadias ao serem levados. Segundo o jornal The Guardian, a divulgação do relatório foi atrasada porque um documento chinês enviado à ONU forçou a proteção de nomes e fotos de alguns entrevistados, por razões de segurança.

"O documento é um desafio sem precedentes às mentiras de Pequim", afirmou Sophie Richardson, diretora da ONG Human Rights Watch na China. "As conclusões explicam por que o regime chinês lutou com unhas e dentes para impedir a publicação." Omer Kanat, diretor de uma organização voltada à proteção da minoria, celebrou o fato de as Nações Unidas "reconhecerem, de forma oficial, que crimes horríveis estão acontecendo" em Xinjiang.

Pequim nega ter cometido abusos contra os uigures. Mais cedo, o embaixador na ONU, Zhang Jun, disse a jornalistas que o país havia deixado claro a Bachelet que se opunha ao documento, ao qual a China teve acesso antes da divulgação, alertando para o risco de ele minar as relações com as Nações Unidas. "Todos sabemos que a chamada questão de Xinjiang é uma mentira completamente fabricada com motivos políticos e visa a minar a estabilidade da China e obstruir o seu desenvolvimento", disse.

Ao fim, além de agradecer ao regime por cooperar com informações, o texto faz recomendações a Pequim, que incluem libertar todos os indivíduos arbitrariamente privados de liberdade, esclarecer o paradeiro de desaparecidos e investigar as alegações de violações em campos de detenção.

Bachelet, a oitava chefe do Alto Comissariado de Direitos Humanos, anunciou em junho que não tentaria um segundo mandato por razões pessoais —aos 70 anos, disse querer voltar para a família no Chile e acompanhar o momento histórico que o país vive, às vésperas de um plebiscito sobre a nova Constituição.

Pelas regras da ONU, seu tempo no posto poderia ser renovado por mais quatro anos. O secretário-geral António Guterres deve apontar agora um novo nome, que precisará da aprovação da Assembleia-Geral. Os cerca de dez candidatos potenciais incluem o oficial austríaco das Nações Unidas Volker Türk, o diplomata argentino de carreira Federico Villegas e o senegalês Adama Dieng, que já assessorou Guterres no programa de prevenção de genocídios.

Analistas veem a possibilidade de China e Rússia, membros permanentes do Conselho de Segurança, favorecerem um sucessor com mentalidade política. "O Ocidente e ONGs pressionam por um defensor dos direitos humanos, mas um 'policial global' seria inaceitável para Pequim, Moscou e muitos países em desenvolvimento", disse à agência Reuters Marc Limon, diretor-executivo do Universal Rights Group.

Em uma de suas últimas falas como comissária, Bachelet afirmou à rede Deutsche Welle considerar injustas as críticas por sua postura em relação à China. Segundo ela, seu gabinete vem alertando sobre a situação dos direitos humanos em outras partes do país, ameaças à democracia em Hong Kong. "Buscar diálogo com Pequim não significou fazer vista grossa", disse nesta quarta, após a publicação do relatório.

Ex-presidente do Chile, Bachelet foi nomeada alta comissária em 2018, com elogios por seu histórico pessoal e profissional. Seu pai foi preso, torturado e morto pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile, e ela —então com 23 anos— e a mãe também foram detidas e torturadas. Na política, foi a primeira mulher eleita presidente no país, tendo cumprido dois mandatos.

Ela ascendeu ao cargo nas Nações Unidas quando o então presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou que cortaria o financiamento ao gabinete de direitos humanos do órgão. No ano seguinte, ouviu o brasileiro Jair Bolsonaro (PL) atacar seu pai, elogiar o golpe militar no Chile e dizer que ela defendia "direitos humanos de vagabundos".

Na ocasião, Bachelet alertou para o aumento de mortes pela polícia brasileira e disse que o país passava por uma redução do espaço democrático. Na semana passada, em sua última entrevista coletiva, voltou a dizer que a situação no Brasil é muito difícil e criticou os ataques do presidente ao sistema eleitoral.

Ainda sobre a América Latina, a chilena chamou a atenção para crises na Venezuela e na Nicarágua, lembra Raphael David, acrescentando que sua pressão pela equidade na vacinação contra a Covid foi uma resposta necessária aos impactos da pandemia.

Em outras frentes, Bachelet usou o cargo para se opor ao golpe militar em Mianmar e pedir ao presidente russo Vladimir Putin que encerre a Guerra da Ucrânia e desmilitarize a usina de Zaporíjia. Os seis meses do conflito no Leste Europeu foram "inimaginavelmente aterrorizantes" para os ucranianos, disse ela.

"A jornada para defender os direitos humanos nunca termina —e a vigilância contra retrocessos de direitos é vital."

Com Reuters

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