EUA travam análise de venda de mísseis ao Brasil por preocupação com Bolsonaro, diz agência

Pedido de compra de Javelins, usados na Guerra da Ucrânia, teria sido feito ainda no governo de Donald Trump

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Washington e Rio de Janeiro | Reuters

Um pedido do Exército brasileiro para comprar mísseis antitanque Javelin dos EUA, no valor de cerca de US$ 100 milhões, está parado em Washington há meses devido a preocupações de parlamentares americanos com a postura do presidente Jair Bolsonaro (PL), incluindo ataques dele ao sistema eleitoral brasileiro, disseram diversas fontes dos EUA à Reuters.

A proposta do Brasil para adquirir cerca de 220 mísseis Javelin foi feita inicialmente quando o ex-presidente Donald Trump, aliado de Bolsonaro, estava na Casa Branca. O Departamento de Estado aprovou a proposta no fim do ano passado, apesar de objeções por parte de algumas autoridades de baixo escalão, segundo duas pessoas familiarizadas com o assunto.

Mas o acordo sigiloso, que não havia sido divulgado anteriormente, está desde então emperrado em um limbo processual, em meio à crescente preocupação entre os congressistas democratas a respeito dos questionamentos que Bolsonaro tem feito sobre a integridade das urnas eletrônicas e da segurança da eleição de outubro no Brasil, disseram as fontes.

Mísseis antitaque Javelin expostos em palco ao lado do presidente dos EUA, Joe Biden, durante evento no Alabama - Jonathan Ernst - 3.mai.22/Reuters

O pedido do Brasil pelos mísseis de alta tecnologia fabricados nos EUA, que ganharam fama por seu uso efetivo pelas forças ucranianas contra blindados russos, acabou travado devido a um esforço liderado pelos democratas para enviar uma mensagem a Bolsonaro e às Forças Armadas brasileiras.

Segundo uma fonte que acompanha as negociações, elas estão caminhando lentamente no Congresso e "não devem ir a lugar nenhum tão cedo" devido às incertezas sobre Bolsonaro.

O impasse reforça o impacto que os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral têm causado e indica como o Brasil pode se tornar mais isolado internacionalmente se Bolsonaro seguir o exemplo de Trump e se recusar a aceitar uma eventual derrota na eleição de outubro. Atualmente, ele aparece atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas pesquisas de intenção de voto.

O governo do presidente dos EUA, Joe Biden, ainda assombrado pela invasão do Capitólio por parte de apoiadores de Trump em 6 de janeiro de 2021, tem se mostrado cada vez mais aflito com os comentários autoritários de Bolsonaro, chegando a enviar delegações a Brasília para pedir cautela.

O secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, viajou ao Brasil com uma mensagem de respeito à democracia em uma reunião de ministros de Defesa da região, em julho. A declaração se deu após uma visita no ano passado do diretor da CIA, William Burns, na qual ele disse a importantes assessores de Bolsonaro que o presidente deveria parar de minar a confiança no processo eleitoral do país.

Bolsonaro tem ignorado os apelos. Em vez disso, continua questionando a credibilidade do sistema de votação eletrônica do Brasil e alegou fraude em eleições recentes, sem fornecer provas.

'Brasil não precisa de mísseis'

O papel pós-eleições das Forças Armadas, que comandaram uma ditadura militar por duas décadas após o golpe de 1964, é uma questão em aberto. Bolsonaro pediu que o Exército realize sua própria contagem paralela de votos, dizendo que as Forças Armadas estão do seu lado.

Os EUA também estão preocupados com o retrocesso ambiental sob Bolsonaro, bem como seu relacionamento amigável com o presidente russo, Vladimir Putin, cuja invasão da Ucrânia ele se recusou a condenar.

Fabricado pelos gigantes da área de defesa Lockheed Martin Corp e Raytheon Technologies Corp, o Javelin se tornou uma das armas mais conhecidas do mundo devido ao seu sucesso contra tanques russos na Guerra da Ucrânia.

O Brasil não enfrenta ameaças semelhantes, suscitando perguntas sobre por que o país precisaria de tal poder de fogo, disseram fontes. As Forças Armadas brasileiras se concentram principalmente em proteger suas fronteiras, que estão entre as maiores do mundo, e em realizar missões internacionais de paz. Segundo um ex-assessor do Congresso americano com familiaridade com a questão, "o Brasil não precisa deles".

Outra fonte disse que o apoio do Departamento de Estado à venda dos mísseis mostrou que os EUA queriam satisfazer o Brasil para ajudar a melhorar as relações com um dos mais importantes aliados militares de Washington na região.

O Palácio do Planalto encaminhou um pedido de respostas sobre o tema ao Ministério da Defesa, que não respondeu a uma série de perguntas. O Departamento de Estado também não comentou.

O pedido de compra dos mísseis aconteceu em 2020 em um momento de aquecimento dos laços entre EUA e Brasil sob Trump e Bolsonaro. Em 2019, Trump designou o Brasil como um aliado de primeiro nível dos EUA extra-Otan, permitindo maior acesso ao armamento fabricado por empresas americanas. O acordo atravessou a burocracia da era Trump e foi herdado por Biden, um democrata menos amigável com Bolsonaro do que seu antecessor republicano.

Ainda assim, o Departamento de Estado sob Biden deu um aceno preliminar positivo ao acordo após o que uma pessoa familiarizada com o assunto descreveu como apenas discussões superficiais, ignorando as preocupações de diplomatas dos EUA no Brasil e de autoridades de baixo escalão em Washington.

Segundo uma fonte do governo americano, autoridades do Departamento de Estado expressaram preocupações a respeito da venda —devido à retórica de Bolsonaro e à postura dos militares no passado—, mas essas questões não são compartilhadas no Departamento de Defesa nem entre a liderança da chancelaria.

O Departamento de Estado então enviou a proposta de venda para uma revisão "informal" por parte dos dois democratas que presidem as comissões de Relações Exteriores do Congresso e os dois principais membros republicanos dos colegiados. Fontes do Congresso dizem que o tema não avançou devido a preocupações de parlamentares, incluindo o senador Bob Menendez e o deputado Gregory Meeks, que são democratas, assim como Biden.

Eles fizeram diversos questionamentos ao Departamento de Estado, desde o histórico de direitos humanos de Bolsonaro até o fato de se o Brasil precisa de tais armas, de acordo com uma fonte do Congresso, sugerindo que os parlamentares querem pelo menos adiar a venda até depois das eleições no Brasil.

Um porta-voz disse que o colegiado não comenta casos de vendas de armamento sob revisão, acrescentando que Meeks leva em consideração uma série de pontos ao revisar tais transações, incluindo dinâmicas diplomáticas e de segurança, bem como preocupações com direitos humanos.

Não há indícios de que os dois republicanos que também analisam o pedido brasileiro, o senador Jim Risch e o deputado Michael McCaul, tenham expressado quaisquer reservas, disseram fontes.

O Departamento de Estado reconheceu, em resposta aos parlamentares, que os mísseis Javelin não protegem contra qualquer ameaça específica que o Brasil enfrenta, disse uma autoridade dos EUA. Mas o departamento argumentou que a tentativa do Brasil de atualizar sua capacidade antiblindados é legítima e que o país busca um número razoável de mísseis, acrescentou a autoridade.

Soldado americano em treinamento com mísseis Javelin em base no Afeganistão - Lucas Jackson - 1º.jan.15/Reuters

OBSTÁCULOS SIGNIFICATIVOS

Apesar das tensões entre Biden e Bolsonaro, os EUA permaneceram abertos à venda dos armamentos para o Brasil, com a visão de que o Brasil tem o direito de adquirir equipamentos militares como achar melhor e de acordo com as leis americanas.

Mesmo que a venda passe para a próxima fase —uma revisão completa do Congresso—, ainda enfrentará obstáculos significativos. O senador democrata Tim Kaine, que preside o subcomitê relativo aos países ocidentais, disse que gostaria de examinar de perto qualquer venda. Vender armas para o Brasil, disse ele à Reuters, "não é algo que eu sentiria imediatamente que deveríamos fazer".

A demanda por Javelins disparou desde o início da Guerra da Ucrânia. Portanto, mesmo que o acordo seja aprovado, pode levar anos para o Brasil receber os mísseis, devido a uma carteira de pedidos, com prioridade para outros parceiros dos EUA.

Se o pedido for negado, fontes argumentam que o Brasil tem outras opções, principalmente o HJ-12, a versão chinesa e mais barata do Javelin.

Matt Spetalnick , Gabriel Stargardter , Patricia Zengerle e Mike Stone
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