Às 16h40 de segunda-feira (8), a menina de 13 anos enviou uma mensagem para a avó de 72 que estava no hospital, desejando-lhe melhoras e dizendo que estava rezando por sua rápida recuperação. "Que doce da sua parte, meu amorzinho!". Foi a última vez que ela falou com a neta.
Quatro horas depois, enchentes provocadas por uma das chuvas mais fortes registradas na Coreia do Sul desceram pelos degraus da casa semissubterrânea de três cômodos no sul de Seul, onde a menina morava com a mãe, 47, e a tia, 48.
A família havia se mudado para o lugar havia sete anos. Elas sabiam que o bairro de baixa altitude era propenso a inundações, mas ele era barato e perto de um centro de assistência social do governo, onde a tia, que tinha síndrome de Down, podia ser atendida.
As fortes chuvas que atingiram a área metropolitana de Seul de segunda-feira até o início de quarta (10) deixaram seis pessoas desaparecidas e pelo menos nove mortas, incluindo a família de três —destacando a situação dos pobres urbanos na Coreia do Sul, bem como a crise habitacional do país e a desigualdade crescente.
O risco de inundação dessas moradias, chamadas de "banjiha", foi retratado de forma dramática no filme sul-coreano "Parasita", que se tornou a primeira obra em língua estrangeira a ganhar o Oscar de Melhor Filme, em 2020.
A água desceu com tanta força que a família não conseguiu abrir a única porta, de acordo com vizinhos e funcionários de emergência. A mãe da menina bateu na porta e chamou os vizinhos, pedindo ajuda. Estes ligaram para a linha de emergência do governo, mas tantas vítimas das enchentes estavam telefonando que suas chamadas não foram atendidas.
Dois moradores tentaram resgatar a família pela janela da casa no nível da rua, mas não conseguiram passar pela grade de aço que bloqueava a abertura. "A água encheu a casa tão rapidamente que não pudemos fazer nada", disse Jeon Ye-sung, 52, a repórteres.
Jeon havia corrido para casa na noite de segunda depois que sua filha lhe telefonou dizendo que a água estava jorrando pelas janelas. Ele quebrou os vidros para resgatar as três filhas. No imóvel vizinho, quando os funcionários de resgate bombearam a água na terça-feira (9), encontraram as três mortas.
Outra das nove mortes confirmadas até aqui foi a de uma mulher de 50 anos que também morava numa dessas casas em Seul. Ela fugiu da enchente, mas voltou para resgatar o gato e não conseguiu mais sair. Em Seul, cidade onde os preços altíssimos das moradias são um dos maiores problemas políticos, morar em prédios altos construídos por conglomerados como Samsung e Hyundai é um símbolo de status.
Mas os pobres geralmente vivem em "banjiha" baratas, úmidas e mofadas. Centenas de milhares de pessoas habitam essas moradias na congestionada área metropolitana, onde lutam para encontrar emprego, economizar dinheiro e educar seus filhos para superar a crescente desigualdade.
Ao longo dos anos, Seul se ofereceu para ajudar aqueles que moram nesses apartamentos subterrâneos, fornecendo bombas e equipamentos para combater enchentes. Também renovou os sistemas de esgoto em bairros de baixa altitude, para drenar a água das chuvas mais rapidamente. O governo pediu aos que vivem em porões semissubterrâneos que se mudem para apartamentos estatais com aluguéis baratos.
Ainda assim, milhares de famílias vivem em "banjiha", temendo inundações a cada temporada de monções. Elas constroem pequenos diques com sacos de areia ao redor das casas. Quando a enchente baixa, colocam suas roupas e móveis nos becos para secar. Em uma pesquisa em 2020, mais da metade das 500 residências semissubterrâneas em dois distritos de Siheung, a sudoeste de Seul, relataram que suas casas ficam submersas durante as chuvas.
Nesta quarta, depois da tragédia, autoridades da capital sul-coreana voltaram a prometer uma revisão da legislação para banir o uso residencial desse tipo de imóveis. Pela proposta, em um período de 20 anos eles seriam convertidos em depósitos ou estacionamentos, por exemplo, e moradores hoje instalados teriam novos benefícios para se mudar a residências estatais.
"Quando voltei para casa do trabalho, encontrei minha 'banjiha' embaixo d'água", escreveu um morador no portal sul-coreano Naver na terça (9).
No mesmo dia, quando o presidente Yoon Suk-yeol visitou o bairro onde a família de três mulheres morreu, a casa ainda estava com água na altura da cintura. Travesseiros, móveis e sacolas plásticas flutuavam, e Yoon teve que se agachar do lado de fora para olhar para o imóvel pela janela no nível da rua.
O bairro estava repleto de sacos de lixo, móveis danificados pela chuva e eletrônicos que as famílias arrastaram para fora das casas no porão. "Não há quase nada que possamos salvar", disse Park Kyong-ja, 77, que mora no bairro há 26 anos.
Choi Tae-young, chefe da Sede Metropolitana de Incêndios e Desastres de Seul, culpou a água da enchente por bloquear a porta da casa da família. Mas os vizinhos acusaram o governo de não alertar os moradores sobre as inundações iminentes. A cidade não avisou sobre o perigo de um córrego próximo transbordar até as 21h21 de segunda-feira, segundo a mídia local e vizinhos.
De dentro de casa, a família das mulheres ligou para os vizinhos entre 20h e 21h, pedindo ajuda porque não conseguiam sair. A mãe da adolescente, identificada pela polícia apenas pelo sobrenome, Hong, também ligou para sua mãe no hospital às 20h37, dizendo que não podia abrir a porta por causa da enchente, segundo o jornal diário JoongAng Ilbo.
Hong Seok-cheol, 46, que mora em uma casa semelhante ao lado, saiu às 19h45 de segunda para jantar com a mulher. Quando o casal voltou para casa, 40 minutos depois, ficou chocado ao encontrar o beco inundado e o imóvel submerso. "A chuva veio tão depressa e furiosa, e a pressão nos canos de drenagem subterrâneos foi tão forte que eles estouraram, piorando a inundação", disse Hong.
Alguns utensílios domésticos pertencentes à família morta estavam diante do prédio de quatro andares na quarta-feira, incluindo um ursinho de pelúcia branco. Na garagem subterrânea, havia quatro carros cobertos de lama. "As chuvas torrenciais foram as piores em 115 anos", disse o presidente Yoon. "Os pobres e os fracos são mais vulneráveis aos desastres naturais. Nosso país se tornará seguro quando eles se sentirem seguros."
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