Descrição de chapéu Mundo leu

Judeu que passou por dois campos de concentração busca o passado em livro

Autobiografia de Louis Frankenberg dá dimensão histórica presente em grandes memórias da Segunda Guerra

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São Paulo

Uma autobiografia tem o direito de dar ênfase aos embrulhos psicológicos ou, então, à história com a qual o autor acerta suas contas pela janela política ou social. Louis Frankenberg, em "Cinco Vezes Vivo", cumpre essas duas tarefas ao mesmo tempo. E o faz invejavelmente bem.

A vida do autor que sobreviveu ao Holocausto é singular. Passou por dois campos de concentração —o de Westerbork, na Holanda, e o de Theresienstadt, na atual República Tcheca— e tinha apenas oito anos quando se viu livre do nazismo e dez ao chegar a Porto Alegre, na casa dos tios que o criaram.

Só em 1988, como homem maduro, saiu à procura do próprio passado. Pesquisou sobre um tio-avô, médico em Alkmaar, cidadezinha holandesa em que nasceu. Depois foi atrás de informações sobre os pais, proprietários de uma papelaria e livraria na cidade.

O secretário de Saúde holandês Maarten van Ooijen discursa em cerimônia para lembrar 80 anos do envio do primeiro trem, com 1137 judeus, do campo de Westerbork para Auschwitz - Sem van der Wal - 15.jul.22/AFP

Louis e a irmã Eva, três anos mais velha que ele, foram os únicos sobreviventes entre os parentes mais próximos que permaneceram na Europa durante a guerra. Os pais foram assassinados no campo de Sobibor, em 1944, em detalhes que o autor reconstituiu só na década de 1990.

Lode —como o autor é familiarmente chamado— diz que por décadas procurou não se aproximar de episódios doloridos. Ele foi apenas mais um entre milhares de órfãos anônimos que o hediondo nazismo provocou. Seu livro, com um texto delicioso para o qual contribuiu Ricardo Garcia, funciona em múltiplos tentáculos.

Traz, por exemplo, informações detalhadas sobre o estoque de material de escritório da loja familiar, o que nos conta indiretamente sobre o padrão de consumo nos anos 1930. Narra de modo emotivo o cardápio das festas de Ano-Novo, as brincadeiras nas águas frias das praias holandesas no verão, os casamentos e enterros.

Ainda revela quantos trens saíram de Westerbork para campos de extermínio na Polônia e quantos judeus cada composição transportava. E contextualiza historicamente o conjunto da lógica de extermínio, com Himmler, Eichmann e outros protagonistas institucionais da "solução final".

A autobiografia descreve a tensão compartilhada pelos prisioneiros dos campos de trânsito, à espera da elaboração semanal da lista dos ocupantes do trem que partiriam em direção ao extermínio. As vítimas nada sabiam sobre as câmaras de gás, mas supunham o quanto era falacioso o plano de apenas submetê-las ao "trabalho forçado", porque do leste ninguém voltou para contar como foi.

O livro de Frankenberg roteiriza personagens com nomes e traços de personalidade, discorre em detalhes sobre a alimentação insuficiente e sobre o conforto precário, como as esteiras no chão sobre as quais dormiam os prisioneiros em Theresienstadt.

O autor não nos fornece apenas um bloco compacto de tristezas. Nós o recebemos dividido em pormenores, o que torna esses blocos bem mais angustiantes e instrutivos. Essa estruturação do texto autobiográfico dá uma dimensão histórica só presente em grandes rememórias sobre a Segunda Guerra Mundial. De certo modo, o livro de Frankenberg tem a estatura para ocupar também esse lugar.

Em duas passagens o autor se surpreende pela facilidade com que, durante suas pesquisas em arquivos da Holanda, chegou a menções sobre si próprio ou sobre a parte exterminada de sua família. A verdade é que a ditadura nazista funcionava com uma boa racionalidade, porque sem isso haveria uma dispersão da energia necessária para a prática concentrada de decisões monstruosas.

Outro fator que beneficiou o biógrafo foi a quantidade e a qualidade dos documentos produzidos pela família. Sobretudo as cartas que sua mãe escreveu a partir do final dos anos 1930 para a mãe e a irmã, moradoras, como emigrantes, da capital gaúcha.

O livro tira proveito dessas fontes. E aborda, sem meias palavras, uma característica que Frankenberg teria omitido por questão de pudor —a incontinência urinária que o perseguiu tarde na infância, reação involuntária à carência de afeto provocada pela ausência dos pais.

Hans e Trudi, é assim que eles se chamavam, afastaram-se dos filhos para que os nazistas não se apoderassem de toda a família, caso descobrissem os locais em que estavam escondidos.

Lode não se lembra do momento em que viu os pais pela última vez. Foi vitimado pelo mesmo lapso que não o deixa recordar como foram os três dias num vagão ferroviário para animais no qual, em companhia de centenas de outros judeus, foi transportado entre dois campos de concentração, da Holanda para a então Tchecoslováquia.

Cinco vezes vivo: Um Sobrevivente do Holocausto à Procura do seu Passado

  • Autor Louis Frankenberg com Ricardo Garcia
  • Editora Terceiro Nome
  • 448 págs. R$ 89
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