Nova onda de brasileiros em Portugal se organiza para denunciar discriminação e exigir direitos

Casos recentes reforçam crescimento da discussão racial e poder das redes sociais

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Lisboa

Antes do episódio de racismo vivido pelos filhos dos atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso em um restaurante de Portugal, relatos de discriminação e xenofobia contra brasileiros no país já vinham inundando as redes sociais. Muitas das postagens foram compartilhadas pelas próprias vítimas, que, segundo especialistas e o próprio governo luso, estão mais dispostas a defender seus direitos.

"De forma geral, as pessoas estão mais conscientes e atentas ao problema. Elas têm identificado as situações que vivenciam e procurado formas de denúncia", avalia Cyntia de Paula, presidente da Casa do Brasil em Lisboa, ONG que presta assistência à comunidade brasileira.

Além do poder de megafone das redes sociais e do crescimento da discussão racial em diversas partes, a diversificação do perfil de migrantes brasileiros em Portugal —com presença forte e engajada de estudantes, profissionais especializados e empresários— também pode estar contribuindo para a ampliação desse debate público.

Movimento da praça do Comércio, em Lisboa - Patricia de Melo Moreira - 29.abr.22/AFP

"A vinda recente de diversos grupos do Brasil certamente tem contribuído para a identificação maior de situações de xenofobia e racismo", completa Cyntia. Ela destaca, porém, que os migrantes ainda enfrentam outras questões urgentes, como a precariedade dos postos de trabalho e os custos crescentes de moradia.

Em Portugal há cinco anos, a psicóloga Mariana Braz conta que demorou algum tempo para reconhecer situações de discriminação, por vezes sutis, que ela e amigas vivenciavam como mulheres no exterior. Para ajudar a dar mais visibilidade ao problema, ela criou, em 2020, o perfil "Brasileiras não se Calam". Embora o projeto compile depoimentos de episódios de xenofobia em vários países, a maior parte dos relatos recebidos aconteceu em Portugal.

"Acho que isso acontece tanto por haver uma grande comunidade brasileira quanto pela questão colonial, que ainda persiste", diz. "Os portugueses ainda veem as mulheres como um corpo colonial do Brasil, o que acaba influenciando muito nessa questão da xenofobia."

O projeto rapidamente ganhou notoriedade entre a comunidade brasileira no país ibérico. Embora as histórias sejam anônimas e não sirvam oficialmente como ferramenta de denúncia, a psicóloga avalia que dar visibilidade ao tema e proporcionar um espaço de troca de impressões têm ajudado as brasileiras que vivem no exterior a lidar com as situações de discriminação.

"Eu recebo muitos relatos de mulheres que dizem que, depois de lerem os depoimentos e de verem nos comentários como outras pessoas reagiram em situações semelhantes, conseguem também se defender", afirma. "A tendência é, numa hora dessas, a gente ficar paralisada. Se você já tem uma experiência prévia, ainda que não seja a sua, acaba também conseguindo desenvolver estratégias para fazer alguma coisa."

Outros brasileiros têm se dedicado a difundir informações importantes sobre legislação e direitos entre os compatriotas. Voz ativa no movimento que pressiona as autoridades portuguesas para resolver os atrasos na emissão dos documentos dos imigrantes, o médico baiano Marcelo Sampaio começou a se mobilizar após receber informações desencontradas dos órgãos oficiais.

O psiquiatra chegou a Portugal em março de 2020, dois dias antes do lockdown que, devido à pandemia, paralisou o país —e boa parte dos serviços públicos— por mais de dois meses.

"Foi uma época difícil, e eu já tive problemas com essa questão da documentação. Então mergulhei na legislação portuguesa e vi que o texto aprovado na Assembleia da República é uma coisa, mas, no fim, o funcionário que está atendendo muitas vezes faz outra."

Depois de identificar que muitos de seus pacientes brasileiros não tinham noções de seus direitos relativos à saúde, ele passou a compartilhar informações sobre o atendimento para estrangeiros, incluindo os que se encontram em situação irregular. Quando, no começo do ano, o sistema de renovação automática das autorizações de residência parou de funcionar, deixando milhares de brasileiros com a documentação vencida, o médico ajudou a inundar as entidades responsáveis com reclamações.

"Em Portugal existe um órgão que não tem poder de veto, mas que pode pressionar e é uma espécie de fiscalizador do poder público. Então, estimulei cada um, individualmente, a criar uma denúncia sobre o SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] estar descumprindo a lei, que estabelece que o imigrante tem de pedir a renovação do seu título de residência com 90 dias de antecedência."

O movimento de reivindicação de direitos também está presente nas universidades, onde os brasileiros já têm destaque nas associações das principais instituições. Na internet, o coletivo Estudantes Internacionais vem ajudando a denunciar episódios de discriminação ocorridos em sala de aula, entre outras situações.

Em entrevista à Folha no fim de julho, a ministra dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, responsável pela tutela das migrações, reconheceu o aumento nos relatos de xenofobia no país, mas destacou que os migrantes também estão mais conscientes de seus direitos. Os dados mais recentes referentes à discriminação étnica e racial no país são referentes a 2020, quando a Comissão de Combate à Discriminação registrou 655 queixas —um aumento de 50,2% em relação a 2019.

Neste ano, novo documento deve ser divulgado em setembro, e a expectativa é que o balanço de denúncias tenha novo aumento substantivo. "Temos recebido mais relatos [de discriminação], mas acho que também se criou um movimento maior de denúncia. Não significa necessariamente que haja mais casos em números absolutos, mas que estamos cada vez mais conscientes", diz Cyntia de Paula.

Ela lembra ainda o fator do crescimento da ultradireita nacionalista na Europa, no país representada pelo deputado André Ventura (Chega), que ascendeu com forte discurso anti-imigração.

Portugal vive atualmente uma nova onda de imigração de brasileiros, que formam, com folga, a maior comunidade estrangeira. Pelas estatísticas oficiais, em 2021 havia 204.694 brasileiros residindo legalmente no país, mais de 150% de alta em relação a 2016, quando eram 81.251. Embora esses dados já representem 3 em cada 10 imigrantes, o tamanho real da comunidade é ainda maior, uma vez que o SEF não contabiliza quem tem cidadania portuguesa ou de outro país da União Europeia e aqueles que estão em situação migratória irregular.

Com a aprovação de novos vistos de trabalho para o país, promulgados pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa nesta semana, a expectativa é que a comunidade brasileira tenha crescimento ainda maior a partir de agora.

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