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Interesse Nacional Onde se fala português

O que Portugal pode ensinar ao Brasil sobre segurança alimentar

Diversidade de acesso aos alimentos integra, permanentemente, agenda pública de Lisboa

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Pedro Motta Pinto Coelho

Embaixador aposentado. Foi cônsul-geral do Brasil em Lisboa

Interesse Nacional

Publicações recentes na imprensa têm dado conta do significativo e crescente número de residentes brasileiros em Portugal. Reportagem da Agência Estado, de 8 de agosto, com base em dados oficiais portugueses, fala em 211 mil compatriotas "residindo legalmente", ou seja, em situação regular no país, um recorde.

Aumento expressivo, posto que em 2016 eram apenas 81 mil os "brasucas", como somos chamados, residindo legalmente na terrinha. Contando os nacionais emigrados, em situação irregular, esse número, na estimativa do Itamaraty, ultrapassaria os 300 mil.

São bem conhecidos o perfil dessa imigração e sua evolução nas últimas duas ou três décadas, bastando recordar a difícil questão dos dentistas brasileiros em busca de reconhecimento para exercício da profissão no país em inícios da década de 1990.

Mulheres fazem compras em mercado de Cascais, em Portugal
Mulheres fazem compras em mercado de Cascais, em Portugal - Pedro Fiuza - 13.jul.22 / Xinhua

Em que pese essa referência ao caso dos dentistas, e com certeza houve outros casos semelhantes, é importante reiterar a predominância de espírito positivo e de amizade na recepção de Portugal aos brasileiros.

Nas funções de cônsul-geral do Brasil em Lisboa nos anos em torno da virada do século, pude verificar o mesmo, dentro da realidade da época, aos que chegavam de forma irregular. Hoje, os "brasucas" são muito bem-vindos e, salvo casos isolados, a interação dá-se de forma muito positiva.

Vale ressaltar nesse sentido a ação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP,) onde tanto Portugal como Brasil têm atuado, junto com os demais países-membros, em prol da livre movimentação das pessoas no espaço comunitário.

Aqui, interessaria pinçar, no amplo contexto da exposição dos nacionais brasileiros residentes às realidades cultural, social e econômica portuguesas, aspectos que bem poderiam ajudar-nos na solução de questões correspondentes em nosso país.

De imediato, por exemplo, os brasileiros em Portugal, como aliás em qualquer país mais desenvolvido, experimentam uma oferta alimentar, se não mais rica, ao menos mais variada do que a disponível "back home". Especialmente em alimentos proteicos, uma visita ao supermercado português revelará tamanha diversificação de produtos, a preços variáveis, a maioria sem correspondência no nosso mercado.

A carne de peru, fresca sempre, mais barata do que a carne de frango, é disponível todo o ano, em cortes por partes ou quartos; o mesmo para a carne de porco, numa profusão de cortes que, em sua maioria, simplesmente são ignorados ou desconhecidos no Brasil: o "cachaço", por exemplo, um corte de um ou dois quilos, de parte do porco ao que parece junto ao pescoço (miolo da paleta?), de carne meio tenra, com estrias gelatinosas, muito rico em colágeno.

Presumindo-se a equivalência da qualidade da carne em geral, o frango vem em distintas classificações, "de granja", "do campo", "bio" (cuidado com o bio fake, no Brasil), algo que só há pouco se apresenta no mercado brasileiro, e assim mesmo de forma limitada e a que preços.

E lá estão, sempre a preços baixos, outras variedades de carnes, coelho, leitão, perdiz, codorna, carneiro novo (borrego), cordeiro, pato, javali, todos produtos difíceis, em sua maioria, de encontrar entre nós, para nada falar dos altos preços, quando disponíveis. Deixemos, por óbvio, o bacalhau e a ampla gama de frutos do mar e pescados, em impensável multiplicidade de qualidades, espécies e cortes onde aplicável.

O bacalhau, sempre muito mais em conta do que no Brasil, onde, apesar de ser do gosto popular enraizado profundamente em nossa herança cultural portuguesa, virou comida só de rico.

Inescapável indagar os motivos por que nossa realidade alimentar não possa colher lições do rico e variado panorama português.

A segurança alimentar é uma questão bem estudada no Brasil. Nem todos os problemas, contudo, são conhecidos ou identificados. Na extensa e árida planura do mapa da fome entre nós, e que sombreia crescentemente mais de 30 milhões de brasileiros, há desvãos por vezes profundos e ignorados. Entre eles, e como referido acima, a pequena variedade de alimentos proteicos à disposição do consumidor, e menos ainda a preços compatíveis com o magro orçamento familiar da grande maioria.

A carne de boi é cara, e as opções são poucas e também caras ou de qualidade questionável, quando não há certificação. Exceção talvez para a carne de porco, hoje de boa qualidade e com preços mais acessíveis, mas ainda objeto de reduzida demanda, em parte por fatores culturais.

Caberia indagar se os cartéis da carne bovina e de frango terão algum papel na exclusão ou redução da participação de outras opções proteicas no mercado interno. Por que, por exemplo, a carne de peru fresca, cujo preço poderia ser até inferior ao do frango, não está disponível o ano todo no mercado? Aliás, nem mesmo no período das festas natalinas, em que é mais consumida, a carne de peru fresca é encontrável. Só congelada e industrializada, com tempero e tudo. E a que preços?

A carne de boi (em Portugal é carne de vaca), básica no cardápio nacional, é cada vez mais cara, pois tende a ter preços ajustados ao mercado internacional, visado pelos grandes produtores. Peixe é raro e, se de boa qualidade, caríssimo. A alta contaminação dos rios por mercúrio —não só na Amazônia—, defensivos agrícolas e esgoto pelo Brasil afora, inibe, ou deveria inibir, o consumo consciente do pescado de água doce.

O pescado brasileiro, de mar e fluvial, inexplicavelmente, não fora por entendimentos equivocados sobre a pesca artesanal, ainda é de qualidade incerta e sem rastreio. O pescado de cultivo, a aquicultura, atividade em expansão e globalizada, tem dados grandes saltos e evoluiu muito em anos recentes no Brasil, com parques aquícolas distribuídos em vários estados, nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.

Abrange frutos do mar, camarão —este ainda em recuperação de alguns problemas— e principalmente a tilápia e, dentro em breve, o pacu. Produzida no Brasil em tanques-rede, como em São Simão, a tilápia é objeto de um processo quase revolucionário de crescimento e de desenvolvimento tecnológico.

A pesca fluvial e a artesanal, entretanto, não está infelizmente integrada aos modernos processos produtivos, faltando-lhe a rastreabilidade e, portanto, a garantia de qualidade e o selo SIF que hoje em dia proporciona segurança de qualidade a grande maioria da produção de alimentos proteicos de origem terrestre no Brasil.

Talvez mais do que qualquer outro fator, permanece a limitação de políticas públicas, ou ausência delas, em prol da diversificação, por ignorância, ou conivência com interesses específicos. Temos muito a aprender com outros países, onde a diversidade de acesso aos alimentos, à parte e em complementação às políticas de preços, de garantia de qualidade, de educação e cultura, de ocupação do solo e de desenvolvimento sustentável, integra de modo permanente as agendas de gestão governamental e do legislativo, no que toca à segurança alimentar.

Na verdade, não parece sequer haver debate público a respeito especificamente do acesso à diversidade alimentar.

Mesmo porque o combate à fome não pode justificar-se num modelo de pobreza da qualidade alimentar ou de alimentos contaminados. Nunca houve fome no Paraguai, mesmo nas épocas mais difíceis, pois sempre houve carne e leite acessíveis e em abundância. O mercado era apenas o interno, claro.

Já ao mudarmos o cenário para os tempos de Sarney na Presidência da República, e com o Plano Cruzado deixando a nova moeda sobrevalorizada, as prateleiras dos supermercados se esvaziaram dos produtos tradicionais ao mercado interno, como a carne bovina, o leite ou o frango. Tomaram o seu lugar, discretamente, e vendidos a preços de banana, sofisticados produtos brasileiros destinados à exportação.

Eram produtos como magret de pato, perdiz e até faisão, aves criadas por exemplo em sítios no entorno de Brasília, ou os filezinhos de porco, os "solomillos", então não disponíveis e somente em anos recentes conhecidos no mercado interno. Com o cruzado sobrevalorizado em relação ao dólar, mais compensava despejá-los no mercado interno.

De pouco adiantou. Ao que me recordo, tais produtos dormiam nas prateleiras dos setores de congelados, pelo simples motivo de que poucos consumidores conseguiam identificá-los ou sabiam o que deles fazer. Ou seja, cuida-se mal da economia e ignora-se sua interação com as políticas públicas em educação, saúde, cultura e meio ambiente.

Fernando Henrique Cardoso se gabou, em 1995, de inaugurar a era do "frango a R$ 1 o quilo". De lá para cá, vimos o valor e em boa parte a qualidade de ambos os produtos se desmancharem, também sem grandes efeitos no combate à fome.

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