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Ruki Fernando

Sri Lanka deve confrontar seu passado para que tenha um futuro

Nunca houve momento melhor para desafiar instituições que antes eram vistas como intocáveis

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Ruki Fernando

Ativista dos direitos humanos e consultor do Sri Lanka no Centro para a Sociedade e a Religião (CSR).

No mês passado, uma revolta popular sem precedentes no Sri Lanka levou à queda da família autoritária Rajapaksa, que dominou a ilha por quase duas décadas. Mas a vitória foi passageira e agridoce.

A escolha de Ranil Wickremesinghe, sucessor de Gotabaya Rajapaksa, por parlamentares sugere que as exigências da população não serão atendidas. Na verdade, horas depois da posse de Wickremesinghe, o país declarou estado de emergência, levando a um grande número de prisões de manifestantes e restrições de viagens.

As forças de segurança fizeram ataques violentos nos locais de protesto antigoverno em Colombo e outros lugares, espancando civis, jornalistas e advogados e destruindo propriedades. Isso sugere que a brutalidade e os atos ilegais da dinastia anterior podem não terminar tão cedo.

Multidão segura bandeiras em frente a edifício com pilastras
Manifestantes protestam em frente ao palácio presidencial em Colombo, capital do Sri Lanka - 9.jul.22/AFP

Os protestos da "luta popular" (Janatha Aragalaya) foram desencadeados pela escassez generalizada de eletricidade, gás, fertilizantes, alimentos e medicamentos. A maior parte da culpa pode ser atribuída a décadas de políticas econômicas ruins, empréstimos não controlados, corrupção, militarização e autoritarismo. As disparidades econômicas do país foram evidenciadas por manifestantes que invadiram o palácio presidencial no mês passado e revelaram a luxuosidade em que os governantes viviam.

O confisco do dinheiro e dos bens obtidos ilicitamente pela família Rajapaksa e por seus aliados agora se tornou uma exigência fundamental do movimento protestante. Nos últimos anos, membros da família e aliados foram acusados de delitos que incluem desde lavagem de dinheiro ao tráfico de armas e fraudes, mas, até o momento, ninguém foi preso.

Seria difícil haver um substituto mais pró-Rajapaksa e ilegítimo do que Wickremesinghe, que ocupou o cargo de primeiro-ministro seis vezes e cuja gestão foi acusada diversas vezes de improbidade pela participação em eventos como o golpe dos títulos do Banco Central de 2015 e os campos de tortura no final da década de 1980.

Na última eleição, Ranil perdeu o cargo de deputado e, portanto, deveria ter perdido sua legitimidade política. Durante seu mandato de premiê, de 2015 a 2019, ele não tomou providências para que a família Rajapaksa fosse investigada. Além disso, falhou em estabelecer um mecanismo judicial extraordinário com participação internacional, que atenderia a resolução histórica do Conselho de Direitos Humanos da ONU de 2015 e garantiria que os envolvidos nas atrocidades cometidas durante o período de guerra fossem responsabilizados.

No entanto, a opinião pública está mudando e exigindo que os crimes dos Rajapaksa sejam investigados.

No mês passado, manifestantes ergueram cartazes com fotos de jornalistas e ativistas que desapareceram ou foram assassinados, como Lasantha Wickrematunge, Prageeth Ekneligoda, Lalith Kumar Weeraraj e Kugan Muruganathan. Outros crimes incluem o massacre na prisão de Welikada em 2012, a descoberta de uma vala comum da década de 1980 ligada a uma revolta cingalesa e até os atentados na Páscoa de 2019. Todos esses casos têm algo em comum: a falta de solução e fortes suspeitas do envolvimento do regime Rajapaksa, especialmente do ex-presidente Gotabaya.

O clamor por justiça está sendo conduzido por muitos dos antigos eleitores dos Rajapaska, que em sua maioria são apoiadores do nacionalismo budista cingalês e chegaram a considerar os Rajapaksas heróis de guerra que salvaram o país do terrorismo.

Agora, o maior desafio que a verdade e a reconciliação enfrentam é conseguir —e manter— o apoio da maioria budista cingalesa no Sri Lanka, para que os responsáveis pelas atrocidades cometidas contra os tâmeis durante a guerra civil sejam investigados e punidos. Embora os crimes tenham sido cometidos por governos diferentes e grupos rebeldes tâmeis durante três décadas, a ONU e outras organizações consideram os Rajapaksas os principais responsáveis pelo sangue derramado na reta final da guerra.

Responsabilizá-los significa fazer justiça pelos militares que alguns cingaleses enxergam como heróis. Nunca houve momento melhor para desafiar instituições que antes eram vistas como intocáveis, e é perceptível que tem havido uma mudança de postura em relação a isso.

A ONU e as principais nações ocidentais precisam apoiar a busca por justiça, nacional e internacionalmente. No ano passado, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou uma resolução sobre reconciliação, responsabilização e direitos humanos no Sri Lanka que exige a obtenção e preservação de provas para processos judiciais. Agora, é necessário fortalecer e expandir suas funções de modo a incluir o levantamento de evidências de supostos crimes financeiros.

Nosso desacreditado ex-presidente, Gotabaya Rajapaksa, agora está escondido em Singapura. Seus irmãos Mahinda (ex-presidente e primeiro-ministro) e Basil (ex-ministro das Finanças) também poderão deixar o país se as restrições de viagem impostas pela Corte Suprema forem revogadas.

Os governos estrangeiros precisam recusar qualquer pedido de asilo da família e de seus aliados e apoiar as iniciativas internacionais de responsabilização pelos crimes cometidos. Nos últimos dias, grupos de defesa dos direitos humanos e organizações tâmeis fizeram um apelo às autoridades de Singapura para que punam Gotabaya, visto que ele se encontra no país.

Porém, fundamentalmente, cabe ao governo do Sri Lanka perseguir os Rajapaksas. Não pode haver endosso ou proteção das ações do regime anterior. Uma das medidas mais audaciosas que qualquer nova administração poderia tomar seria ratificar o Estatuto de Roma com efeito retroativo, fazendo com que o Sri Lanka passasse a responder à jurisdição do Tribunal Penal Internacional.

O país deve isso aos cidadãos cingaleses, que estão sofrendo as consequências de uma combinação de falhas internas e externas. A ilha deve confrontar seu passado para ter um futuro.

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