Descrição de chapéu The New York Times aborto

'Vão me deixar morrer?', diz mulher que teve aborto proibido nos EUA

Madison Underwood tinha gravidez de risco e se viu em meio a batalha para poder fazer procedimento

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Neelam Bohr
Chattanooga | The New York Times

Madison Underwood estava deitada na maca de ultrassonografia, grávida de quase 19 semanas, quando um médico entrou para dizer que seu aborto fora cancelado. Então chegaram enfermeiras que começaram a limpar o gel de seu abdome, enquanto o médico se inclinava para falar com seu noivo, Adam Queen.

Madison recorda que ficou em silêncio, imóvel. Duas semanas antes ela e o noivo haviam sido informados que o feto tinha um problema que o impossibilitaria de viver fora do útero. Se tentasse levar a gestação até o final, poderia adoecer criticamente ou mesmo morrer, o médico alertara. Agora estavam dizendo que ela não poderia fazer o aborto que não queria, mas do qual precisava.

"Vão me deixar morrer, simplesmente?", pensou.

mãe abraça filha, ao lado de seu marido, à frente de automóvel
Madison Underwood (centro) abraça sua mãe, Jennifer, enquanto o marido, Adam Queen, descansa após viajarem a Atlanta - Kendrick Brinson - 8.jul.22/The New York Times

No meio da confusão, ela ouviu falarem de uma clínica na Geórgia que poderia realizar o procedimento, agora que os riscos legais no Tennessee eram grandes demais. Ouviu seu noivo xingar e dizer ao médico, com voz frustrada, que aquilo não fazia sentido. Ouviu o médico concordar.

Três dias antes a Suprema Corte americana derrubara o direito constitucional ao aborto. Uma lei aprovada no Tennessee em 2020 que proibia a realização do procedimento a partir de seis semanas de gestação tinha sido sustada por uma ordem judicial, mas agora poderia entrar em vigor.

Madison não imaginara que isso poderia afetá-la. Tinha 22 anos e estava emocionada com a ideia de ter um filho com Adam, 24. Eles haviam passado dias refletindo antes de tomar a decisão de interromper a gravidez. Ela chegou à clínica chorando e com medo.

A jovem havia ouvido sobre a Suprema Corte ter revogado Roe vs. Wade, mas pensou que, como seu aborto tinha sido marcado antes da decisão da corte e de qualquer proibição estadual entrar em efeito, o procedimento seria autorizado.

O aborto é permitido no Tennessee se a vida da mulher corre perigo, mas os médicos tiveram medo de tomar essa decisão precocemente e correr o risco de ser processados. A paisagem legal estava mudando tão rapidamente em todo o país que algumas clínicas começaram a recusar pacientes antes de as leis entrarem em vigor oficialmente.

Medidas promulgadas séculos atrás proibindo o aborto foram reativadas, mas passaram a ser contestadas em igualmente pouco tempo. Nos estados onde o procedimento ainda era permitido por lei, o tempo de espera nas clínicas aumentou tremendamente, com uma fila de mulheres de locais onde a proibição estava em vigor buscando alternativas.

Madison foi mandada para casa no meio desse caos, grávida e em choque. O médico lhe recomendara ir à Geórgia, onde o aborto era permitido até 22 semanas de gestação —uma proibição entraria em efeito em pouco tempo.

'Quero uma menina'

Adam Queen percebeu que sua noiva estava grávida antes dela: Madison vinha vomitando todas as manhãs e começara a pedir comida chinesa, que normalmente detestava. Uma noite em maio, ele levou um teste de gravidez para casa. Torceu e rezou.

Com o resultado positivo, Madison ficou com a respiração suspensa. "Tomara que seja menino", disse o noivo. O coração dela começou a bater forte.

Adam já tinha uma filha de um relacionamento anterior. Ele e Madison namoravam havia quatro anos, e ele a pediu em casamento durante uma viagem. Os dois enfrentaram críticas por engravidar antes de se casar, mas, com a cerimônia marcada para o final de junho, além da expectativa de um bebê, isso foi esquecido.

Quando Madison fez seu primeiro check-up numa clínica local gratuita, ficou sabendo que estava grávida de 13 semanas e que o parto estava previsto para 23 de novembro. Na consulta seguinte, uma enfermeira prometeu ao casal mais fotos de ultrassom para levarem para casa. Ela fez perguntas, tirou medidas, mas então ficou calada. "Ela nos mandou aguardar. Disse que a enfermeira chefe ia chegar, conversar conosco e ver o que deveríamos fazer dali em diante", conta Madison.

Para a mãe de Adam, Theresa Davis, que sofreu sete abortos espontâneos, as palavras dispararam alarmes. "Não está me parecendo boa coisa", disse à futura nora.

casal aguarda em recepção de clínica
Madison Underwood e seu noivo, Adam Queen, chegam à recepção de uma clínica de aborto em Atlanta - Kendrick Brnson - 8.jul.22/The New York Times

A enfermeira chefe disse que havia um caso leve de encefalocele, formação de uma espécie de tumor na nuca do feto porque os tubos neurais não se fecham no primeiro mês de gestação. O quadro ocorre em 1 a cada 10,5 mil bebês nascidos nos EUA, segundo o CDC.

Ela afirmou que o problema poderia ser resolvido com cirurgia e que o bebê poderia apresentar alguma deficiência intelectual ou atraso de desenvolvimento, além de possíveis convulsões. Madison e seu noivo aceitaram essa possibilidade, mas ela achou preocupante que o bebê teria que passar por cirurgia imediatamente depois de nascer.

Eles ainda foram informados que teriam uma menina. Resolveram chamá-la Olivia.

Os médicos encaminharam a família à Regional Obstetrical Consultants, rede de clínicas especializadas em tratar gestações de alto risco. A clínica não quis dar declarações para esta reportagem. Lá, Madison e Adam receberam outra notícia devastadora: o feto não desenvolvera um crânio. Mesmo com a cirurgia, a bebê sobreviveria no máximo algumas horas após o parto.

Mesmo assim, Madison esperava poder levar a gravidez a termo, para que ela pudesse conhecer sua filha e doar seus órgãos, se possível. Mas os médicos lhe disseram que o tecido cerebral do feto estava vazando para a bolsa umbilical. Isso poderia provocar sepse, levando a uma doença crítica ou mesmo à morte. Os médicos recomendaram a interrupção da gravidez para garantir a segurança da mãe.

O casal adiou o casamento e programou o aborto para uma segunda-feira, 27 de maio.

Envolvida numa batalha nacional ​

Antes de 24 de junho, dia em que foi anunciada a decisão da Suprema Corte, o aborto era permitido no Tennessee até 24 semanas de gestação, mas as clínicas raramente faziam o procedimento após 20 semanas.

Naquele dia o procurador-geral do estado, Herbert Slattery 3º, apresentou uma moção ao 6º Tribunal de Recursos dos EUA para suspender uma liminar de quase dois anos antes que bloqueara uma tentativa de proibir abortos após a sexta semana de gestação. A liminar foi suspensa um dia depois de o aborto de Madison ser cancelado.

Os pais e avós dela, que são contra a interrupção voluntária da gravidez, interpretaram isso como sinal de que a decisão deveria ser reconsiderada. Quando o aborto não foi feito, ficaram convencidos de que Madison devia levar a gravidez a termo. "Estávamos torcendo por um milagre", explica a mãe dela, Jennifer Underwood.

A mãe de Adam disse que apoiou a decisão do casal; ela tinha sido violentada aos 12 anos e dado à luz um bebê natimorto. "A religião não tem nada a ver com isso. Às vezes o corpo prega uma peça. Se você tiver que fazer um aborto, não se sinta culpada por isso", falou.

Com as pressões sobre o casal crescendo, Adam deixou seu emprego para cuidar de Madison. Sua mãe levantou US$ 5.250 numa vaquinha virtual, para despesas da viagem e o custeio da cremação do feto.

'Nossa nenê vai morrer'

Num dia do início de julho, dois carros saíram de Pikeville às 2h para, atravessando divisas estaduais e fusos horários, chegar a tempo da consulta marcada para as 8h numa clínica de aborto na Geórgia. Madison, Adam e a mãe dele estavam em um dos carros; os pais de Madison e um de seus irmãos, no outro —estes haviam decidido no último minuto acompanhá-la, apesar de não concordarem totalmente com sua decisão.

Ao amanhecer, Madison e Adam estavam sentados numa mesa de canto na Waffle House. Ela faria um procedimento em duas partes conhecido como D&E, dilatação e extração, ao longo de dois dias. Primeiro, receberia medicamentos para induzir a dilatação e seria enviada a um quarto de hotel para aguardar. No dia seguinte, retornaria à clínica para concluir o procedimento.

Os funcionários avisaram a família sobre a presença de manifestantes diante da clínica. Quando os dois carros chegaram ao estacionamento, passaram por um homem que segurava cartazes mostrando fetos mortos. "Matar bebês é tudo bem para vocês?", ele gritou num megafone.

O homem se aproximou do carro dos pais de Madison, e a mãe dela abriu a janela. "Estamos do mesmo lado que você. Mas os médicos disseram que nossa nenê vai morrer." Ele respondeu: "Vocês confiam mais nos médicos que em Deus?".

Lado a lado, Madison e Adam percorreram uma subida íngreme para chegar à clínica. Ela usava fones de ouvido. Seis horas mais tarde, eles saíram outra vez. O estacionamento estava em silêncio.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.