Entenda como funciona a rede de espionagem de Putin na internet

Vazamento de arquivos de agência que controla redes no país revela mecanismos de censura e repressão do governo

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Paul Mozur Adam Satariano Aaron Krolik
Taipé e Londres | The New York Times

A Guerra na Ucrânia havia começado apenas quatro dias antes, mas o extenso aparato russo de vigilância e censura já estava operando a pleno vapor.

A 1.300 quilômetros a leste de Moscou, as autoridades da região do Bashkortostão, nos Urais, tabulavam os comentários de uma série de postagens nas redes sociais. Elas deram nota negativa para publicações críticas ao governo russo no YouTube. Tomaram nota da reação a um protesto local.

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Montagem mostra uma ilustração da catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, em Moscou, e reproduções de uma série de documentos vazados da agência que regula a internet na Rússia - Max-o-matic/NYT

Os oficiais então compilaram suas descobertas. Um relatório sobre a "desestabilização da sociedade russa" citou o editorial de um site de notícias considerado opositor do governo que dizia que o presidente Vladimir Putin estava invadindo a Ucrânia para promover interesses próprios. Um dossiê arquivado em outro local deu detalhes sobre os proprietários do site e onde eles viviam.

Outro despacho, de 28 de fevereiro, intitulado "Presença de Ânimos de Protesto", advertiu que algumas pessoas expressaram apoio aos manifestantes e "falaram sobre a necessidade de dar um fim à guerra".

O relatório é um entre os quase 160 mil documentos da sede do Roskomnadzor —pronuncia-se "Ros-com-no-dzor"—, o mais poderoso órgão russo de regulamentação da internet, no Bashkortostão.

A papelada detalha o funcionamento interno de uma faceta fundamental do sistema de vigilância e censura de Putin, empregado por seu governo para localizar e rastrear opositores, sufocar dissidentes e suprimir informação independente, mesmo nos confins mais longínquos do país.

O vazamento "é como um vislumbre, através de um buraco de fechadura, da escala da censura e da vigilância pela internet na Rússia", diz Leonid Volkov, acrescentando que "a realidade é ainda maior". Citado nos documentos, ele é chefe de gabinete de Alexei Navalni, líder oposicionista preso pelo governo.

As atividades do Roskomnadzor impeliram a Rússia para a linha de frente dos países que fazem uso agressivo da tecnologia como ferramenta de repressão, ao lado de países autoritários como China e Irã.

Desde que a agência foi criada, em 2008, Putin a converteu em um instrumento essencial para fortalecer seu controle sobre o território, no processo de transformar a Rússia em um estado ainda mais autoritário.

Mas ela faz parte de um aparato muito maior, construído pelo presidente ao longo dos anos. Inclui um sistema de espionagem doméstica que intercepta telefonemas e mensagens transmitidas pela internet, campanhas de desinformação online e hackeamento de sistemas governamentais de outros países.

Os arquivos descobertos agora revelam uma obsessão particular com Navalni e ilustram o que acontece quando todo o peso do estado de segurança russo é centrado em um alvo individual.

O sistema busca controlar mobilizações como a que ocorreu nesta semana, quando manifestantes em todo o país protestaram contra o alistamento compulsório de cerca de 300 mil pessoas para lutar na Guerra da Ucrânia. Pelo menos 1.200 pessoas já foram detidas por protestar.

Mais de 700 gigabytes de documentos da seção do Roskomnadzor no Bashkortostão foram disponibilizados online em março pelo grupo DdoSecrets, que divulga documentos hackeados.

O New York Times construiu um software e uma ferramenta de busca para analisar os documentos em russo, planilhas, vídeos e apresentações do governo. Cinco indivíduos diretamente visados pelo Roskomnadzor nos arquivos foram entrevistados, além de advogados, ativistas e empresas que vêm combatendo a agência e ainda outros especialistas em vigilância e censura russas.

O Roskomnadzor não respondeu aos pedidos de comentário da reportagem.

"Isto é o autoritarismo", afirma Abbas Galliamov, que era um alto funcionário do governo no Bashkortostão e foi espionado pelo Roskomnadzor por ter feito críticas a Putin. "Eles estão vigiando."

Os olhos de Putin na internet

O Roskomnadzor nasceu em 2008 como um pequeno órgão burocrático com algumas dezenas de funcionários que regulavam sinais de rádio, telecomunicações e entregas postais. Seu papel foi ampliado à medida que aumentaram as preocupações do Kremlin com a internet, menos controlada pelo Estado que a TV e a rádio e, portanto, local em que a mídia independente e os oposicionistas eram mais ativos.

Depois de as redes sociais ajudarem a facilitar os protestos massivos da Primavera Árabe, em 2010, as autoridades russas deram ao Roskomnadzor mais poder de controle, afirma Andrei Soldatov, coautor de um livro sobre censura e vigilância russa na internet.

De seu QG em Moscou, a agência passou a pressionar provedores de internet. Em 2012, ano em que Putin assumiu seu terceiro mandato, ela montou uma lista de sites que as empresas eram obrigadas a bloquear.

Essa lista, que cresce constantemente, inclui hoje mais de 1,2 milhão de URLs, entre as quais sites de notícia russos sobre política, certos perfis em redes sociais e plataformas de pornografia e de jogos de azar. A informação é da entidade da sociedade civil Roskomsvoboda, que rastreia os bloqueios.

Ao longo da última década, a agência puniu plataformas como Google, Facebook, Twitter e Telegram, forçando-as a tirar do ar conteúdos considerados ilícitos pelas autoridades. O LinkedIn saiu do país em 2016, após sofrer sanções por não armazenar dados de usuários russos nos centros de dados nacionais.

Em 2019, as autoridades queriam ir além. O Roskomnadzor ordenou a instalação de uma nova tecnologia de censura conhecida como "meio técnico de combater ameaças" em redes telefônicas, incluindo no Bashkortostão. A agência passou a bloquear e a interferir no funcionamento de sites a partir de Moscou.

Os documentos revelam que os funcionários da agência exigiam que os serviços de internet locais confirmassem a instalação dos sistemas de censura. Esquemas indicavam onde as caixas de censura deveriam ser situadas na rede. Funcionários do Roskomnadzor visitavam as empresas para verificar se os equipamentos estavam instalados corretamente e enviavam relatórios sobre a eficácia da tecnologia.

Um dos primeiros alvos dessa ferramenta foi o Twitter. No ano passado, as autoridades estrangularam o acesso à plataforma, fazendo-a funcionar muito lentamente. Desde o início da Guerra da Ucrânia, o Roskomnadzor também bloqueou o Facebook, o Instagram e outros sites, além de muitas redes virtuais privadas, ou VPNs, que são usadas para contornar esse tipo de controle da internet.

Em 2020, o comando do Roskomnadzor foi assumido por Andrei Lipoz, um tecnocrata do governo que defende que a internet russa tenha ainda menos contato com o Ocidente. Sob sua direção, a agência vem operando de modo ainda mais semelhante a um serviço de inteligência.

Vladimir Voronin, advogado que representa ativistas e grupos de mídia visados pelo Roskomnadzor, diz que a agência também está se aproximando mais do Serviço Federal de Segurança, ou FSB, a agência de inteligência doméstica e principal sucessora da KGB que no passado foi comandada por Putin.

O FSB opera um sistema de espionagem chamado Sistema de Atividades Investigativas Operativas que é usado para monitorar telefonemas e o tráfego na internet na Rússia.

O Roskomnadzor ajudou Putin a centralizar o poder longe de Moscou. O escritório regional no Bashkortostão compartilhou apenas uma parte minúscula de seu trabalho com o governo local, segundo um documento. Muitos de seus relatórios eram enviados diretamente ao FSB e a outras agências centrais.

A espionagem prejudicou os alvos de vigilância. O ProUfu.ru, site noticioso local do Bashkortostão que escreveu em tom crítico sobre o governo, disse que o governo pressionou empresas a pararem de anunciar no site. Os documentos revelam que os censores voltaram sua atenção ao ProUfu.ru devido a um editorial crítico escrito em fevereiro sobre a ação de Putin na Ucrânia. O grupo foi tema de um dossiê que, atualizado regularmente, detalhava sua cobertura e quem eram os seus proprietários e o seu editor-chefe.

"Empresários são ameaçados de ter suas iniciativas fechadas se ousarem continuar trabalhando conosco, mesmo que minimamente", afirma o grupo, que adotou o nome de Prufy, em seu site. "Nossos recursos estão quase esgotados." O Prufy se negou a dar declarações a essa reportagem.

A caça a Navalni

Navalni, líder do maior movimento oposicionista russo, ofusca os outros rivais domésticos de Putin. No escritório do Roskomnadzor no Bashkortostão, nenhuma menção a ele era pequena para passar batida.

Funcionários identificavam artigos e comentários nas redes sociais sobre ele, além de sites em que seu nome aparecia nas margens, como um link relacionado. Em relatórios mensais, eles contabilizavam diariamente as críticas ao governo, frequentemente ao lado de notícias importantes ligadas a Navalni.

Depois de a ProUfu.ru publicar um vídeo de uma entrevista com Navalni em 2020, o site foi acusado de infração administrativa por ter postado informações sobre "atos criminais passíveis de punição", segundo um registro incluído nos arquivos. A agência cooperou com ramos diferentes do aparato de segurança russo para perseguir não apenas Navalni, mas também seus apoiadores.

No Bashkortostão, o principal alvo era a advogada Lilia Tchanicheva, 40. Tchanicheva é apoiadora de Navalni há pelo menos uma década. Em 2013, ela se mudou de Moscou para Ufa, a maior cidade do Bashkortostão, onde viviam seus pais. Em 2017, ela trocou um emprego bem pago de auditora na consultoria internacional Deloitte para abrir um escritório regional de Navalni.

Tchanicheva foi alvo de revistas aleatórias e foi detida pela polícia. Durante a campanha presidencial de Navalni, antes das eleições em 2018, passou mais de 45 dias na cadeia por ter promovido protestos não autorizados e outros delitos, segundo seus colegas. Em outubro de 2020 seu nome foi incluído numa lista de "fontes desestabilizadoras" da região. Ela foi intimada por "criticar o governo federal e regional russo".

Em abril de 2021, o Kremlin classificou as organizações de Navalni como grupos extremistas ilegais, e elas foram dissolvidas à força. Temendo ser presos, muitos líderes das organizações deixaram o país. Tchanicheva permaneceu. Em novembro, foi presa, acusada de "extremismo".

Segundo um registro sobre o incidente, os censores do Roskomnadzor observaram que a prisão dela "provocou repercussão entre ativistas e usuários nas redes sociais". Mas não ficaram muito preocupados. No topo do documento, escreveram: "A atividade de protesto foi de nível relativamente baixo".

Não foi possível entrar em contato com Tchanicheva, que está presa em um centro de detenção em Moscou. Voronin, seu advogado, disse que ela passa seu tempo escrevendo cartas e separando lixo para reciclagem. Ela foi condenada e sentenciada a uma pena de dez anos.

Tradução de Clara Allain 

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