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Guerra da Ucrânia Rússia

Putin flerta com Terceira Guerra Mundial em jogada arriscada

Russo tenta consolidar ganhos na Ucrânia, mas conflito nuclear deixou de ser especulação

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São Paulo

O que quer Vladimir Putin? A questão ronda a cabeça de políticos e observadores militares no Ocidente e na Rússia desde que o ex-espião emergiu como o czar do século 21, na virada dos anos 2000.

Esta opacidade talvez seja seu maior ativo, dado que se encaixa tanto na descrição elogiosa de suas capacidades de sobrevivência e consolidação de poder nessas duas décadas quanto na acusação de ser mais um líder tático e reativo do que um pensador estratégico.

Lançador do míssil intercontinental Iars, para ataques nucleares, em parada na praça Vermelha, em Moscou
Lançador do míssil intercontinental Iars, para ataques nucleares, em parada na praça Vermelha - Ilia Pitalev - 24.jun.2020/Reuters

Sua campanha na Ucrânia, contudo, obedece a uma linha do tempo lógica de queixas, sinalizações e gestos concretos. Lida como neoimperialista no Ocidente, ela emula o pensamento da elite russa que agora se vê apavorada pelo espiralar de fatos na guerra em curso.

Em resumo, é uma visão de que o Ocidente aproveitou-se da fraqueza russa após a dissolução da União Soviética, em 1991, com um cerco econômico e militar crescente. Ela é calcada em várias realidades inegáveis, como a expansão da Otan e a necessidade do maior país do mundo de ver suas fronteiras estratégicas protegidas após a perda de territórios tampão: seja a Ucrânia, a Geórgia ou o Cazaquistão.

Mas também desconsidera outras coisas, a começar a parceria energética simbiótica com a Europa, que agora cobra seu preço com a ameaça de um inverno frio e famélico no continente, mas também a posição dessa elite no mundo globalizado.

Nesse sentido, a invasão russa, vista por muitas pessoas próximas do Kremlin como impossível pelo custo que acarretaria, é uma paradoxal profecia autorrealizável. Desde o famoso discurso de Munique em 2004, Putin sempre disse o que lhe incomodava e marchava ante o mutismo ocidental.

Foi assim quando lutou na Geórgia em 2008 e ao anexar a Crimeia e incitar a guerra do Donbass em 2014. Isso fora a ação em frentes secundárias, como a guerra civil síria em 2015, o conflito no Cáucaso em 2020 ou a repressão à revolta cazaque de janeiro passado. Para americano ver ou não, foram ações.

Só em 2021, Putin promoveu duas grandes mobilizações para ameaçar resolver a questão de sua fronteira com a Europa "manu militari". Não foi ouvido. Apesar de ser algo próximo de um Estado falido, a Ucrânia é soberana e uma percepção dupla pesou no Ocidente: por um lado, a ideia de que Putin não pararia ali; por outro, a conveniência de enfraquecer o maior aliado da China sem arriscar uma guerra nuclear.

Até aqui. A campanha russa foi marcada, na primeira fase em que fracassou em tomar Kiev no susto e na terceira, que viu a queda das áreas ocupadas em Kharkiv, por um misto de soberba e inépcia tática, aliadas à falta de pessoal suficiente. Mais sucesso ocorreu na segunda, quando o Kremlin focou o Donbass e a consolidação da ponte terrestre entre a região e a Crimeia.

Ainda assim, as vozes dos falcões da elite russa, muitos egressos dos serviços de segurança como o poderoso chefe da Guarda Nacional, Viktor Zolotov, sempre clamaram por um endurecimento que Putin evitava por temer mais desgaste doméstico —apesar de manter a retórica antiocidental afiada.

Agora, recorre a uma bomba atômica política, preparando a anexação de áreas não totalmente sob seu controle e anunciando a mobilização de 300 mil homens. O problema, para o presidente e para o Ocidente, é que esse processo embute um risco muito aumentado de algum artefato nuclear real acabar entrando em uso.

O desenho é simples: se o Donbass é russo e a Ucrânia o ataca com ajuda ocidental, então é a Rússia sob ataque e isso remete à doutrina nuclear assinada por Putin em 2020.

Segundo ela, a bomba será usada se o país for atacado com armas de destruição em massa, o que é meio óbvio. Mas também "no caso de agressão contra a Federação Russa com armas convencionais, quando a própria existência do Estado estiver sob ameaça".

No discurso em que anunciou a guerra, em 24 de feveiro, Putin disse: "Para o nosso país, [a Ucrânia se aliar ao Ocidente] é uma questão de vida ou morte, do nosso futuro histórico como nação. Isso não é exagero, é um fato. Não é só uma ameaça bem real a nossos interesses, mas para a própria existência do Estado e de sua soberania".

Retórica, claro, pois uma Terceira Guerra Mundial acabaria com o mundo como o conhecemos, e por um tempo deu certo. Mas deixa aberta a possibilidade, em especial do uso de ogivas táticas, aquelas de baixa potência e pouca contaminação residual, para uso contra tropas.

O problema é que seu emprego pode vencer batalhas, mas para vencer guerras o degrau é acima: armas estratégicas, que arrasam cidades inteiras e inviabilizam o solo. A noção de que um ataque com uma ogiva menor levaria a uma escalada é convencional por um bom motivo.

O risco, portanto, deixa o campo da especulação novamente, como fez em alguns momentos desta guerra. Putin visa consolidar seus ganhos até aqui, nada desprezíveis e que dificultam vida da Ucrânia como Estado, chantageando uma Europa assustada com o inverno à frente. Talvez namore uma saída que possa vender como honrosa.

A China segue em sua própria opacidade: a decisão do aliado veio depois do encontro entre Putin e Xi Jinping na semana passada, assim como a guerra foi iniciada 20 dias depois da rodada anterior, levando à suposição de uma bênção de Pequim a um jogo no qual tem muito a perder.

O faz com sua jogada mais arriscada até aqui, sem garantia de que vai dar certo e talvez o obrigando a cobrir a aposta feita para não perder a cadeira. Se tem isso no horizonte das possibilidades, é insondável —e, justamente por isso, angustiante.

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