Em ligações interceptadas, soldados da Rússia na Ucrânia mostram Exército despreparado

Transcrições de telefonemas revelam falta de suprimentos e equipamentos e violência generalizada

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Yousur Al-Hlou Masha Froliak Evan Hill
Kiev | The New York Times

Serguei: Nossa ofensiva parou. Estamos perdendo essa guerra.

Ievguêni: Estamos posicionados na cidade de Butcha.

Serguei: Recebemos ordens de matar todo mundo que virmos pela frente.

A ideia era que Kiev cairia em questão de dias. Mas, sob o peso de erros táticos e enfrentando resistência ucraniana, o avanço do presidente Vladimir Putin estancou em pouco tempo, e suas forças ficaram atoladas na periferia da cidade pela maior parte do mês de março.

Recrutas da Rússia durante exercício militar na capital Moscou - Nanna Heitmann - 21.ago.22/The New York Times

Em trincheiras, casamatas improvisadas e em casas ocupadas na área em volta de Butcha, um subúrbio a oeste de Kiev, soldados russos desobedeceram suas ordens e fizeram telefonemas não autorizados com seus celulares para esposas, namoradas, amigos e pais a centenas de quilômetros da linha de frente.

Outros também estavam ouvindo suas ligações: o governo ucraniano.

O jornal The New York Times teve acesso exclusivo às gravações de milhares de telefonemas feitos ao longo de março desse local crucial e interceptados por órgãos de segurança e policiais ucranianos. Jornalistas verificaram a autenticidade dos telefonemas, cruzando os números de telefone russos com aplicativos de mensagens e perfis em redes sociais de modo a identificar os soldados e seus familiares.

Nas ligações, soldados deram descrições chocantes sobre fracassos no campo de batalha e execuções de civis, criticando seus líderes apenas semanas depois de iniciada a campanha para tomar Kiev.

O NYT passou quase dois meses traduzindo os áudios, editados para maior clareza. O material contém linguagem explícita.

Aleksandr: Putin é um idiota. Ele quer tomar Kiev. Mas não temos como fazer isso.

Andrei: Metade de nosso regimento desapareceu.

Serguei (para sua mãe): Nunca vi tantos cadáveres.

Aleksei (para sua companheira): Disseram que a gente vinha fazer treinamento. Esses filhos da puta não nos contaram nada.

Serguei (para sua mãe): Todos nós pensamos a mesma coisa: essa guerra não era necessária.

Nikita (em conversa com a companheira): Merda. Tem corpos espalhados na rua. Tem civis espalhados por aí. Está tudo fodido.

"Assim, no meio da rua?"

Isso mesmo.

Nikita (para um amigo): Tudo foi saqueado. Todo o álcool, todo mundo bêbado. Todo o dinheiro vivo foi roubado. Todo mundo está fazendo isso aqui.

Serguei (para sua mãe): Ninguém nos falou que íamos para a guerra. Nos avisaram só um dia antes da gente partir.

Nikita (conversando com um amigo): Íamos todos fazer um treinamento de dois ou três dias.

"Cara, eu entendo."

Nos enganaram como se fôssemos criancinhas.

Aleksei (para a companheira): Eu não sabia que isso ia acontecer. Disseram que íamos fazer um treinamento. Esses filhos da puta não nos disseram nada.

Feitos por dezenas de combatentes de unidades aerotransportadas e da Guarda Nacional da Rússia, os telefonemas oferecem uma visão do interior de uma força militar desorganizada e despreparada, apenas algumas semanas depois de iniciada a campanha.

Os soldados descrevem uma crise de moral e uma falta de equipamentos e dizem que lhes mentiram sobre a missão que teriam que desempenhar. Todas essas são condições que contribuíram para os reveses recentes da campanha militar russa no leste da Ucrânia.

As conversas variam do registro mundano ao brutal. Incluem críticas explícitas a Putin e aos comandantes militares —declarações que, se fossem expressas publicamente na Rússia, seriam passíveis de punição pelas leis locais. Para proteger a identidade dos soldados, eles são identificados apenas pelo primeiro nome; nomes de seus familiares são ocultados.

Serguei (para sua mãe): Mãe, acho que essa guerra é a decisão mais estúpida que nosso governo já tomou.

Ilia (conversando com sua companheira): O que mais eles estão dizendo? Quando ele, Putin, vai pôr um ponto final nisso tudo? Que bosta.

"Ele diz que está tudo indo conforme o planejado e dentro do cronograma."

Ele está seriamente enganado.

Soldados se queixam de erros estratégicos e de uma escassez aguda de equipamentos. Confessam ter capturado e matado pessoas que não eram combatentes e admitem ter saqueado residências e estabelecimentos comerciais. Muitos dizem que querem encerrar seu contrato militar. Eles rebatem a propaganda transmitida pela mídia russa.

Aleksandr: Não temos como tomar Kiev. Tomamos vilarejos, só isso.

Serguei (para um amigo): Quiseram fazer tudo de uma vez só aqui, mas não funcionou assim.

Serguei (para a namorada): Na TV eles só querem enganar as pessoas, dizendo tipo: "Está tudo bem, não há guerra nenhuma, só uma operação especial". Mas na realidade é uma guerra sim, uma merda de guerra.

Duas semanas depois de iniciada a invasão, os soldados parecem entender que Kiev está fora de alcance. Depois que as forças ucranianas montam emboscadas e cortam a principal rota de acesso à capital, soldados russos dizem a familiares que a estratégia está fracassando.

Eles expressam espanto diante das forças ucranianas "profissionais" e frequentemente usam a palavra "khokhol", termo pejorativo dirigido aos ucranianos. Um soldado chamado Ievguêni diz sem meias palavras: "Estamos perdendo".

Serguei (para sua mãe): Nossa posição é uma bosta, por assim dizer. Nossa ofensiva está atolada.

Serguei (para um amigo): Um monte de paraquedistas estava avançando à nossa frente. Eles foram atingidos.

Serguei (a seu pai): Tanques e blindados estavam em chamas. Eles explodiram uma ponte e uma barragem. As estradas ficaram inundadas. Agora não temos como nos mover.

Nikita: Os "khokhols" estão avançando e nós estamos parados aqui. Nunca imaginei que eu acabaria numa merda assim.

Soldados descrevem erros táticos e reclamam da falta de armamentos e equipamentos básicos, como óculos de visão noturna e coletes à prova de balas de boa qualidade.

Nikita (para sua namorada): Nossas próprias forças nos bombardearam. Pensaram que fôssemos "khokhols"... Pensamos que estávamos acabados.

Serguei (para a namorada): Alguns dos caras tiraram a proteção antibalas dos corpos de ucranianos e pegaram para eles. As armaduras da Otan que eles usam são melhores que as nossas.

Roman (para um interlocutor desconhecido): Tudo aqui é velho. Não é moderno, do jeito que mostram na Zvezda [TV estatal].

Em meados de março, três semanas depois de iniciada a invasão, eles informam ter tido baixas em grande número.

Nikita, soldado do 656º regimento da Guarda Nacional, diz à namorada que 90 homens foram mortos em volta dele numa emboscada. Num telefone compartilhado por integrantes do 331º regimento aerotransportado, um soldado chamado Semion estima que um terço de seu regimento foi morto. Outro descreve fileiras de caixões contendo os corpos de 400 paraquedistas jovens que esperavam num hangar de aeroporto para serem mandados para casa.

Igor (para um parente): Só do meu regimento um terço morreu.

Nikita (para sua mãe): 60% do regimento já acabou.

Ievguêni (para um parceiro): Do meu regimento Kostroma não sobrou ninguém.

Serguei (para sua mãe): Havia 400 paraquedistas. E só 38 sobreviveram. Porque nossos comandantes mandaram soldados para o matadouro.

Soldados do 331º regimento aerotransportado contam que o Segundo Batalhão inteiro, com 600 soldados, foi exterminado. Um soldado chamado Andrei fala a seu pai que mais de metade de seu regimento "desapareceu". Eles dizem que o comandante do regimento, Serguei Sukharev, morreu nos combates, fato confirmado por relatos contemporâneos na imprensa.

Em casa, na Rússia, os telefonemas revelam que o número crescente de mortes está começando a repercutir em cidades militares, onde comunidades e famílias estreitamente interligadas trocam notícias sobre as baixas. Familiares descrevem fileiras de corpos e caixões chegando, e soldados avisam que mais corpos vão voltar.

Uma mulher conta ao marido que um funeral militar foi realizado cada dia daquela semana. Em choque, algumas famílias contam que começaram a procurar ajuda de psicólogos.

Esposa (para o soldado Ivan): Vania, não param de chegar caixões. Estamos sepultando um homem atrás de outro. É um pesadelo.

Semion (para a companheira): Estou te avisando. Tem uns cem [defuntos]. Não entre em pânico.

Esposa (para o soldado Maksim): As esposas estão enlouquecendo. Estão até escrevendo para Putin.

Ao mesmo tempo que os corpos de soldados russos mortos voltam para casa, cadáveres de civis ucranianos se empilham nas ruas e florestas ao redor de Butcha. Quando imagens desses corpos jogados provocaram ultraje global, no início de abril, Putin e outros líderes russos de alto escalão negaram repetidamente que houve irregularidades e descreveram as atrocidades como "provocação e fake news".

Mas, durante a ocupação dessas áreas, em março, as forças de Putin relataram, horrorizadas, o que haviam testemunhado.

Aleksandr (conversando com um parente): Estávamos andando de carro na cidade, voltando para nossa posição. Havia corpos jogados na rua. Ninguém os havia recolhido.

"Como assim?"

Estou te falando: há braços e pernas espalhados por aqui, já inchados. Ninguém os está recolhendo. Não são nossos, são civis de merda.

"Caramba."

Numa possível prova de crimes de guerra, um soldado chamado Serguei confessa à namorada que seu capitão ordenou a execução de três homens que "passavam ao lado do armazém" e diz que virou um assassino.

Serguei (conversando com a namorada): A gente os deteve, tirou a roupa deles e revistou. Aí então foi preciso decidir se a gente os deixava ir. Se os soltássemos, eles poderiam entregar nossa posição... Então foi decidido fuzilá-los na floresta.

"Vocês atiraram neles?"

Claro que atiramos.

"Por que não os levaram prisioneiros?"

Teríamos que alimentá-los, e não temos comida suficiente nem para nós mesmos, entende?

Com o passar da semana, Serguei conta à mãe sobre a "montanha de corpos" na floresta.

Serguei (para a mãe): Há uma floresta onde fica o QG da divisão. Entrei e vi um mar de cadáveres de roupa civil. Um mar. Nunca vi tanto cadáver na vida. É uma merda total. Está tudo totalmente fodido. Não dá pra ver onde terminam os cadáveres.

Um soldado do 331º regimento aerotransportado chamado Andrei conta à esposa que ameaçou matar um ucraniano bêbado e jogar seu corpo na floresta. Mais tarde Serguei diz que um comandante deu ordens de fazerem exatamente isso.

Serguei (conversando com a namorada): Eles nos disseram que no lugar para onde vamos há muitos civis andando por aí. E nos deram ordem de matar todo mundo pela frente.

"Para que diabos?"

Porque eles podem entregar nossas posições. Parece que é isso que vamos fazer, que bosta. Matar qualquer civil que passar pela gente e arrastar o corpo para a floresta. Já virei assassino. É por isso que não quero matar mais gente, especialmente não as pessoas que vou ter que olhar nos olhos.

Quando as forças russas bateram em retirada, no final de março, autoridades ucranianas descobriram mais de 1.100 corpos na região de Butcha, nas ruas e em quintais, escondidos dentro de poços e porões e enterrados em sepulturas improvisadas. Alguns estavam queimados ou tinham as mãos amarradas.

O chefe regional de polícia de Kiev, Andri Nebitov, disse ao NYT que ao menos 617 dessas pessoas morreram em consequência de ferimentos de bala.

Ao longo da ofensiva paralisada, e antes de as forças russas acabarem por se retirar, no final de março, os telefonemas revelam uma crise de moral. Impaciência, medo e fadiga passaram a dominar, com os soldados descrevendo uma força militar despreparada e em desordem. "Francamente falando, ninguém entende por que temos que travar esta guerra", diz Serguei à namorada.

Soldado: Querida, eu quero realmente ir para casa. Estou tão de saco cheio de ter medo de tudo. Nos trouxeram para um lugar de merda. Que porra estamos esperando? Para nos matarem?

Andrei (para um parceiro): O ambiente está tremendamente negativo. Um cara não para de chorar e o outro está querendo se matar. Estou de saco cheio deles.

Outros soldados reclamam do frio, dos ferimentos provocadas pelo clima, das condições duras para dormir e das falhas logísticas. Soldados dizem que saquearam um açougue e mataram frangos, leitões e uma avestruz para comer.

Ievguêni (para um amigo): Primeiro nos deram rações secas por dez dias; já comemos tudo. Depois recebemos rações para mais três dias. Vão acabar amanhã. Eles vão ter que dar algum jeito.

Aleksandr (conevrsando com a mãe): Estou com feridas nos dedos das mãos e dos pés devido ao frio.

"Vocês não têm médicos aí?"

Sim, mas eles não nos dão nada. Vou ter que ir eu mesmo procurar nas lojas.

Muitos dos soldados expressam desprezo por seus comandantes, que consideram responsáveis por decisões táticas fatais. E alguns deles criticam abertamente o mais supremo dos chefes: Putin.

Roman (para um parceiro): Os bostas dos chefes não podem fazer nada. A verdade que fomos ver é que eles na realidade não sabem de nada. Só o que eles podem é ostentar uniformes e se fazer de importantes.

Serguei (para a namorada): Nosso novo general foi afastado porque houve baixas demais sob a liderança dele.

Serguei (para a namorada): Fico pensando constantemente que sorte tenho de ter conseguido sobreviver aqui. Por causa das ordens de algum imbecil de merda. Enquanto estávamos andando, nossa coluna quase foi emboscada duas vezes.

Frustrados com os reveses contínuos e temendo por sua vida, soldados russos dizem estar fartos com as Forças Armadas. Eles falam em rescindir seus contratos ou até desertar.

Soldado: Vou largar isso daqui imediatamente. Quando eu voltar, te conto tudo. É tudo uma mentira enorme. Nunca mais vou voltar para esta bosta.

Vadim (para a companheira): Vou sair do Exército, pelo amor de Deus, vou procurar um emprego civil. E meu filho também não vai entrar para o exército, 100% que não. Diga a ele que vai ser médico.

Vários soldados temem as consequências, falando que lhes foi dito —às vezes por seus comandantes—que eles podem ser processados e presos.

O advogado russo de direitos humanos Serguei Krivenko disse ao NYT que essa tática usada para meter medo nos soldados não tinha base legal na época. Mas em setembro, dias antes do anúncio de uma mobilização para recrutar centenas de milhares de civis para as Forças Armadas, parlamentares russos aprovaram punições mais duras para deserção, insubordinação e evasão do serviço militar.

Serguei (conversando com a namorada): Enquanto houver combates ativos, não vão me liberar.

"Por que diabos?"

Não estão deixando ninguém se demitir. Disseram que, se você fizer isso, vai para a cadeia por cinco anos.

Esposa (conversando com o soldado Aleksandr): Querido, o que vai acontecer se você se recusar a ir?

"Não sei, podem nos botar na prisão. Há muitos que se recusam a ir."

Muitos soldados têm outra motivação para ficar: precisam do soldo. Além do salário mensal, dizem que estão ganhando o equivalente a US$ 53 por dia em pagamento de combate, o triplo do salário médio pago em suas cidades de origem, como Pskov, de onde vêm muitos dos militares enviados para tomar Kiev.

Parentes e companheiros dos soldados têm reações distintas. Alguns os incentivam a partir, outros pedem que se mantenham firmes. Uma esposa fala: "Não preciso da bosta do seu dinheiro. Só preciso do meu marido de volta."

Aleksandr (para a esposa): Estou de saco cheio desse contrato. Mas onde mais vou conseguir ganhar tanto?

Serguei (para a namorada): Procuro me consolar pensando que se eu ficar aqui por muito tempo, pelo menos vou ganhar muito dinheiro.

Soldado: Não quero mais saber desse Exército de merda. Quem sabe eu vou para a Síria mais uma vez para que a gente possa comprar um apartamento.

"Nem pense nisso."

Ao longo da campanha os soldados se gabam de algo que pode representar mais crimes de guerra: saques. Eles ocupam casas de civis, dormem nas camas deles e levam suas roupas. Quando descobrem dinheiro, o roubam.

Aleksandr (conversando com a esposa): Procure um apartamento em Orenburg.

"Por quê?"

Fomos para uma casa. Micha e eu abrimos um cofre com uma chave. Havia 5.200 lá dentro [5,2 milhões de rublos].

"Ponha de volta."

Não sou idiota. Estou com um apartamento inteiro no meu bolso.

Paramédico do 237º regimento aerotransportado, Aleksandr fica deslumbrado com a riqueza dos ucranianos que estão "rolando na grana". Vários soldados prometem levar "troféus" de volta. Alguns de seus familiares ficam satisfeitos por eles estarem saqueando; outros, consternados.

Serguei (conversando com a namorada): Que televisão você quer? LG ou Samsung?

"Como você vai trazer de volta?"

Vamos descobrir um jeito.

"O que é isso? Cada um de vocês leva uma TV?"

Não são apenas TVs... Dois caras levaram TVs do tamanho da nossa cama.

"Você não vai ser punido por isso? Isso não é saque?"

Nada parecia ser grande ou pequeno demais para ser levado, incluindo extensões elétricas, luzinhas de Natal, liquidificadores, ferramentas de construção, equipamentos de pesca e até uma escova de dentes.

Ievguêni (conversando com interlocutor não identificado): São uns malditos selvagens. Estão roubando tudo.

"Nosso pessoal?"

Mas é claro. TVs de merda.

"Por que eles precisam das TVs?"

TVs, moedores de carne, chaves de fenda e umas malas.

Namorada (conversando com Serguei): Você vai trazer um aspirador de pó também? A gente já tem aspirador.

"Sim, já embalei."

Soldado (para interlocutor não identificado): Estou dirigindo uma Kawasaki aqui.

Parte dos bens roubados chegou à Rússia. Imagens previamente publicadas feitas por câmeras de segurança de uma transportadora da Belarus, além de documentos de transporte de mercadorias aos quais o NYT teve acesso, confirmaram que soldados do 656º regimento da Guarda Nacional, o mesmo identificado em alguns dos telefonemas interceptados, enviaram pacotes para casa nos dias seguintes à retirada.

Os documentos registram pelo menos um soldado, Aleksandr, que o NYT identificou nas ligações interceptadas como sendo dono de um dos celulares usados, enviando roupas à sua mulher em 4 de abril.

Sem contato com o mundo externo e frustrados com seus comandantes, que dizem que os conservam na ignorância, os soldados dependem dos telefonemas para casa para receber informações sobre a guerra em que estão combatendo. Mas o que ouvem de seus familiares —um retrato róseo pintado pela mídia estatal russa— muitas vezes não guarda relação com sua realidade.

Vitali (conversando com seu pai): O que estão dizendo no noticiário? Estamos parados aqui sem informação alguma.

"Vitória aqui, vitória aí. É só isso que a gente vê."

Mãe (conversando com soldado Eduard): Estão mostrando na TV que vocês têm saunas e que eles estão fazendo pão para vocês.

"Sério mesmo? Não é verdade. Você devia ver como estamos."

Pavel (conversando com seus pais): Foi isso que disseram na TV. Que não sobraram mais Forças Armadas ucranianas; só restaram os nazistas.

"Eles depuseram as armas?"

Sim, depuseram as armas e não existem mais.

Serguei desmente a desinformação em conversas francas com a mãe.

Mãe, não vimos um único fascista aqui. Essa guerra é baseada numa premissa falsa. Ninguém precisava dela. Chegamos aqui e encontramos pessoas vivendo uma vida normal. Muito parecido com como é na Rússia. E agora estão tendo que viver em porões. A velhinha que morava perto da gente teve que ir viver no porão. Dá para imaginar?

"Você não pode ser tão unilateral. Eu entendo que é assustador aí e que você se sente mal."

O que o assustador tem a ver com isso? Todos nós achamos a mesma coisa: não havia necessidade da guerra.

As famílias compartilham como estão sentindo os efeitos das sanções e como os preços das mercadorias básicas estão subindo. Elas lamentam o fechamento de lojas como McDonald’s, H&M e Ikea e o blecaute imposto às empresas de mídia.

Esposa (para o soldado Ievguêni): A Amazon fechou, sabia? E a Wildberries. Ficamos sem nada, Jenia. Quando você voltar, vai encontrar os anos 1990.

Namorada (para o soldado Serguei): Todas as grifes de roupa populares foram embora. Não vendem mais placas de vídeo, softwares ou iPhones aqui. É uma merda total. Não vai nem mais haver Coca-Cola.

Esposa (para o soldado Aleksandr): O Instagram está sendo fechado. Foi considerado extremista porque metem pau nos russos.

Na tarde de 30 de março, quase cinco semanas depois de iniciada a invasão de Putin, soldados usando o mesmo celular fazem sete ligações seguidas em apenas 15 minutos. Cada um dos combatentes compartilha uma última notícia.

Ievguêni (conversando com a esposa): Alô?

"Oi."

É isso, estou na Belarus. Acabamos de atravessar a fronteira.

"Você está na Belarus? Graças a Deus!"

Aleksandr (conversando com a mãe): Acabamos de atravessar a fronteira.

"Entendi. Graças a Deus. Quem sabe quando isso vai acabar."

Bem, não é mais nosso problema.

Na Rússia, Putin reformulou sua descrição da campanha militar fracassada. Não teria mais sido um esforço para tomar Kiev, mas para enfraquecer as tropas ucranianas. Tão rapidamente quanto chegaram, os soldados russos ao norte de Kiev se retiraram, se reagruparam e foram ao leste do país, onde separatistas apoiados pela Rússia travam guerra há mais de oito anos.

No dia 1º de abril, jornalistas e a polícia ucraniana entraram nos territórios libertados da região de Kiev pela primeira vez desde o início de março. E a realidade tenebrosa da ocupação russa, transmitida reservadamente entre os soldados e seus familiares, chegou aos olhos do mundo.

Tradução de Clara Allain

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