Descrição de chapéu
Josep Borrell

Parceria entre União Europeia, América Latina e Caribe precisa ser retomada

Em momento de inflexão geopolítica, devemos recalibrar nossa bússola estratégica, identificando perigos e oportunidades

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Josep Borrell

Chefe da diplomacia da União Europeia

Uma relação de amizade funciona se houver memória, confiança e planos compartilhados para o futuro. Uma amizade duradoura consegue superar crises e contratempos. Costumamos dizer que a União Europeia e a América Latina e o Caribe compartilham valores, história, cultura, idiomas e profundos laços políticos, econômicos e familiares. É verdade, mas não podemos viver no passado.

Nesse momento de inflexão geopolítica em que o antigo ainda não desapareceu e o novo ainda não surgiu, devemos todos recalibrar nossa bússola estratégica, identificando perigos e ameaças, como também parceiros e oportunidades.

E, embora o instinto nos faça retrair, devemos resistir porque, no mundo hiperconectado de hoje, não existe canto onde se esconder. As ondas de choque da pandemia, da crise econômica e da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia atingem-nos todos.

Bandeiras da União Europeia na Comissão Europeia, em Bruxelas
Bandeiras da União Europeia na Comissão Europeia, em Bruxelas - Yves Herman/Reuters

Nosso relacionamento está construído sobre bases sólidas. A UE é o terceiro destino das exportações latino-americanas e a primeira fonte de investimento: as empresas europeias já investiram na América Latina e no Caribe mais do que na China, no Japão, na Rússia e na Índia juntos.

Temos uma das redes mais densas de acordos políticos e comerciais, abrangendo 27 dos 33 países latino-americanos e caribenhos. A UE é também o maior contribuinte de ajuda ao desenvolvimento para a região.

A relação é positiva e, talvez por isso mesmo, relaxamos demais. É hora de acordar. Temos que reconhecer que a América Latina e o Caribe não receberam de nós a atenção estratégica que merecem e precisamos propor um aprofundamento das nossas relações em intensidade e volume —ou seja, em termos quantitativos—, mas também em termos qualitativos, com novos acordos e alianças, adaptando a abordagem aos novos desafios.

Claro, isso é algo que requer a colaboração não só de governos e instituições, mas também da sociedade civil, de empresários, estudantes, universidades, cientistas e criadores. Os mais de 230 milhões de jovens dos dois lados do Atlântico têm muito a dizer.

Por isso é tão importante a primeira reunião ministerial birregional desde 2018 entre os chanceleres da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e da União Europeia, que copresidirei com nosso anfitrião argentino, nesta quinta-feira (27).

Temos que conversar mais. Refletir juntos. Escutar-nos mutuamente. Identificar e aceitar as diferenças, mas acima de tudo construir uma agenda positiva para relançar a nossa parceria. Em Buenos Aires temos uma agenda muito ampla, mas quero destacar três razões fundamentais para cooperar mais e melhor.

Primeiro, promover a paz por meio de uma ordem multilateral baseada em regras mais justas e inclusivas. Juntos, por grande maioria, condenamos a invasão injustificada e ilegal da Ucrânia pela Rússia e seu terrível custo humano. Juntos, exigimos respeito aos princípios do direito internacional que a América Latina ajudou a criar, como o respeito à integridade territorial e à soberania dos Estados.

Em um momento em que territórios de outro Estado estão sendo invadidos e anexados e a ameaça do uso de armas nucleares é aberta, a voz da América Latina e do Caribe como região que defende uma visão pluralista —e anti-imperialista— da comunidade internacional e que desde 1969, graças ao Tratado de Tlatelolco, proíbe as armas nucleares, deve ser ouvida.

É claro que paz e democracia vão juntas. Se queremos derrotar a ameaça autocrática e dar mais espaço de liberdade e justiça em nossas democracias, só podemos fazê-lo unidos.

Em segundo lugar, precisamos de uma agenda comum para enfrentar os três grandes desafios do século 21: as mudanças climáticas, a revolução digital e a coesão social. O mundo vindouro será mais dividido, fragmentado e multipolar, com um retrocesso na globalização econômica.

É urgente trabalharmos juntos nesse novo cenário geopolítico para enfrentar os problemas globais de alimentação, energia e dívida, agravados pela guerra. Podemos e devemos fazê-lo porque nossos interesses coincidem.

Em resposta à pandemia e às consequências da guerra, em ambos os lados do Atlântico queremos reforçar nossa(s) autonomia(s), evitando dependências forçadas e aumentando nossa resiliência econômica. Mas autonomia não significa isolamento.

A autonomia requer cooperação e parceiros confiáveis para chegar a acordos, compartilhar tecnologia, regular novos mercados, inovar e investigar, conectar infraestruturas seguras —como o grande cabo digital transatlântico Bella que liga Portugal e Brasil, mas com objetivo de ligar a Europa a toda a América Latina, ou a rede de satélites Copernicus— e diversificar cadeias de valor globais mais resilientes e comprometidas. Tudo isso com padrões sociais e ambientais avançados.

A América Latina e o Caribe são uma potência mundial em biodiversidade, energias renováveis, produção agrícola e matérias-primas estratégicas que quer aproveitar as novas transições para industrializar setores-chave e agregar valor à capacidade produtiva.

Quer crescer, mas com maior igualdade e sustentabilidade. A Europa tem capacidade tecnológica e de investimento e também precisa de alianças com parceiros confiáveis para diversificar suas cadeias de suprimentos.

O desafio é, portanto, modernizar e fortalecer laços, não dependências, colocando as pessoas no centro dessa tríplice transição ecológica e digital, mas também social. Se não reduzirmos as desigualdades, nossos cidadãos darão as costas à mudança.

Afinal, nossas democracias, aqui e ali, como me lembrou recentemente um colega ministro latino-americano, fazem sua a máxima de Cícero: "Salus populi suprema lex". A saúde e o bem-estar do povo são a lei suprema.

Terceiro, num mundo de gigantes, o tamanho importa. Juntos, representamos um terço das Nações Unidas. A UE cresceu em meio às crises, e a guerra de Putin nos recorda que a escala e, portanto, a unidade, são essenciais para sobreviver.

Também aprecio que cada vez mais líderes latino-americanos e caribenhos estejam pedindo uma voz regional mais forte e unida. A integração latino-americana é uma grande promessa a cumprir que não cabe a nós europeus resolver, mas sim apoiar. Na construção da ordem multilateral do futuro, nossas organizações regionais devem desempenhar um papel fundamental.

Adicionalmente, o êxito no delineamento de uma agenda positiva UE-Celac permitirá consolidar a parceria estratégica entre a União Europeia e o Brasil e criar uma convergência de interesses e uma combinação de capacidades que nos permita abordar um contexto internacional submetido a transformações inéditas.

Vamos retomar, em Buenos Aires, o caminho para a revitalização da nossa amizade, e o faremos com memória, confiança e planos de futuro.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.