Putin leva milhares de crianças ucranianas à Rússia para serem adotadas

Embora muitas delas venham de orfanatos e abrigos, outras têm parentes e responsáveis que não sabem onde encontrá-las

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Emma Bubola
The New York Times

Ao mesmo tempo em que as tropas de Vladimir Putin sitiaram Mariupol, no início da Guerra da Ucrânia, as crianças da cidade fugiram de lares comunitários e internatos bombardeados.

Separadas de suas famílias, elas seguiram vizinhos ou estranhos que iam para o oeste, em busca da relativa segurança da região central do país invadido. Em vez disso, em postos de controle ao redor da cidade, forças pró-Rússia as interceptaram, afirmam crianças, testemunhas e familiares.

As autoridades então as puseram em ônibus que se dirigiam para territórios controlados pela Rússia.

Símbolo 'Z', usado pelas tropas russas, pichado em sala de jardim de infância usada pelo Exército ao ocupar Kapitolivka, na Ucrânia
Símbolo 'Z', usado pelas tropas russas, pichado em sala de jardim de infância usada pelo Exército ao ocupar Kapitolivka, na Ucrânia - Nicole Tung - 18.set.22/The New York Times

"Eu não queria ir", diz Ania, 14, que escapou de uma casa para pacientes com tuberculose em Mariupol e agora vive com uma família adotiva perto de Moscou. "Mas ninguém me perguntou."

Na pressa de fugir, ela deixou para trás um caderno de desenhos onde estava o número de telefone de sua mãe e conta que só consegue lembrar dos três primeiros dígitos dele.

Desde o início da invasão que deu início à guerra, no final de fevereiro, o governo russo anunciou com exagero patriótico a transferência de milhares de crianças ucranianas para a Rússia para serem adotadas e se tornarem cidadãs. Na televisão estatal, as autoridades oferecem ursinhos de pelúcia aos menores recém-chegados, que são retratados como crianças abandonadas sendo salvas da guerra.

Na verdade, essa transferência em massa de crianças é um crime de guerra em potencial, independentemente de elas serem órfãs ou não. Além disso, apesar de muitas delas terem vindo de orfanatos e abrigos, também foram levados menores cujos parentes ou responsáveis as querem de volta, segundo entrevistas com crianças e famílias de ambos os lados da fronteira.

À medida que as tropas russas avançavam pela Ucrânia, crianças como Ania, que fugiam de territórios recém-invadidos, foram detidas. Algumas foram levadas depois que seus pais foram mortos ou presos por tropas russas, de acordo com o governo ucraniano.

Esse reassentamento sistemático faz parte de uma estratégia mais ampla do presidente russo, Vladimir Putin, de tratar a Ucrânia como parte da Rússia e projetar sua invasão, vista como ilegal pelo Ocidente, como uma causa nobre. Seu governo usou crianças –incluindo as doentes, pobres e órfãs– como parte de uma campanha de propaganda que apresenta a nação como um salvador caridoso.

Por meio de entrevistas com pais, funcionários, médicos e crianças na Ucrânia e na Rússia, foram identificados vários menores levados. Alguns voltaram para casa. Outros, como Ania, seguem na Rússia.

Ania foi entrevistada várias vezes por meio de mensagens instantâneas e memorandos de voz, e muitos detalhes importantes que ela forneceu foram confirmados por seus amigos, fotografias e um diário que ela mantinha identificando outras pessoas com quem esteve. Ela pediu à reportagem que não contatasse seus pais adotivos, que haviam dito a ela para não falar com estranhos.

Ania diz que vivia separada de sua mãe antes da guerra e que mantinha contato esporádico com ela. Sem o número de telefone, a garota não consegue reencontrá-la. A princípio, os repórteres também não conseguiram. O New York Times não consegue identificar o nome completo de Ania. Uma jovem tímida e apaixonada por desenho, ela diz que sua família adotiva russa a trata bem, mas que quer voltar à Ucrânia.

Logo, porém, ela se tornará cidadã russa. "Eu não quero", afirma. "Meus amigos e parentes não estão aqui."

Ania e outras crianças descreveram um processo doloroso de coerção, engodo e uso de força quando foram enviadas à Rússia. Os relatos se somam a um número crescente de evidências colhidas por governos e veículos jornalísticos sobre uma política de remoção e adoção que visa crianças vulneráveis.

Transferir pessoas de um território ocupado pode ser considerado um crime de guerra e, segundo especialistas, é uma prática especialmente espinhosa quando envolve crianças, que podem não ser capazes de opinar. A Ucrânia acusa a Rússia de cometer genocídio. A transferência forçada de crianças, quando destinada a destruir um grupo nacional, é um ato de genocídio segundo o direito internacional.

Práticas tipificadas como crime de guerra

De acordo com o Estatuto de Roma e as Convenções de Genebra

  • Contra civis e hospitais

    Atacar intencionalmente a população civil ou propriedades que não sejam militares; causar danos que signifiquem consequências ambientais ou de saúde duradouras; deportar ou transferir de maneira forçada a população do território ocupado para outro lugar; destruir construções de saúde, religiosas, educacionais ou científicas; obrigar civis a servirem contra seu próprio país; praticar estupro, escravização sexual, prostituição forçada

  • Contra prisioneiros de guerra

    Obrigá-los a servir nas tropas do país em conflito com o seu; privá-los intencionalmente de direito a um julgamento justo; matar ou ferir um combatente que, tendo deposto as armas, rendeu-se

  • Contra pessoal e comboios humanitários

    Ataques direcionados intencionalmente contra pessoas, instalações, materiais, unidades ou veículos envolvidos em uma ação humanitária de assistência ou manutenção da paz

  • Uso de armas

    Emprego de armas de destruição em massa ou que causem sofrimento injustificado, como as de envenenamento, químicas e biológicas

O governo russo deixa claro que seu objetivo é substituir qualquer apego infantil ao lar pelo amor à Rússia. A comissária russa para os direitos infantis, Maria Lvova-Belov, foi a responsável por organizar as transferências e ela mesma adotou um adolescente de Mariupol.

Alvo de sanções do Ocidente, ela disse que o menino a princípio sentia saudades de casa e até participou de uma manifestação de apoio à Ucrânia. "Ele ansiava pela casa onde cresceu, os amigos e sua querida Mariupol", escreveu no Telegram. Mas as crianças logo começam a apreciar seu novo lar, continuou.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, em encontro com a comissária para os direitos infantis Maria Lvova-Belova no Kremlin, em Moscou
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, em encontro com a comissária para os direitos infantis Maria Lvova-Belova no Kremlin, em Moscou - Mikhail Klimentiev - 9.mar.22/Sputnik/via AFP

Não se sabe o número exato de crianças reassentadas. A Rússia não respondeu a questionamentos sobre o assunto. Já a Ucrânia afirma que não há um número preciso, mas que ele está na casa dos milhares.

Em abril, os russos anunciaram a chegada de 2.000 crianças ao país. Segundo eles, a maioria veio de lares comunitários e orfanatos em territórios há muito ocupados, mas cem chegaram de áreas recém-invadidas. Nos meses seguintes, as autoridades continuaram a anunciar centenas de novas chegadas.

Embora o translado de crianças vindas de terras ocupadas recentemente tenha sido esporádico até agora, o governo russo anunciou há pouco planos de reassentamento mais eficientes, aumentando a chance de que haja muito mais transferências no futuro.

A tática de guerra da Rússia explora dinâmicas familiares complexas e íntimas. As famílias russas falam sobre a adoção como uma questão de patriotismo e expressam um desejo de proporcionar uma vida melhor a essas crianças. Enquanto muitos pais ucranianos buscam recuperar seus filhos, outros nem tentam, por razões financeiras ou porque suas relações com elas haviam sido rompidas antes da guerra.

Em Salekhard, na Sibéria, ao longo do Círculo Polar Ártico, Olga Drujinina diz que adotou quatro crianças, com idades entre 6 e 17 anos, vindas de Donetsk, capital da região ucraniana de mesmo nome ocupada pelos russos desde 2014. A área foi uma das quatro que Vladimir Putin anexou recentemente por meio de referendos considerados ilegais pelo Ocidente.

"Nossa família é como uma pequena Rússia", diz Drujinina. "O país conquistou quatro territórios e a família adotou quatro filhos." Ela diz estar esperando uma quinta criança, e que as considera totalmente russas. "Não estamos pegando o que não é nosso", afirma.

'Eles levaram todas as crianças'

Ania estava vivendo e se recuperando de tuberculose num abrigo comunitário arborizado que contava ainda com um balanço vermelho. Quando explosões destruíram janelas e portas do prédio, as crianças fugiram para o porão, onde Ania lia contos de fadas para os mais novos e passava o tempo desenhando.

Muitos pais resgataram seus filhos do prédio. Outros não, seja porque não conseguiram atravessar a zona de guerra ou porque, como a mãe de Ania, estavam inacessíveis.

Crianças do abrigo afirmam que um voluntário pôs cerca de 20 delas, incluindo Ania, numa ambulância com destino à cidade de Zaporíjia. Mas o veículo foi redirecionado ao chegar a um posto de controle russo, e elas acabaram com outras dezenas de jovens num hospital em Donetsk —que funciona como o centro da política de transferência de crianças da Rússia desde o início da guerra.

Para Ania e outros trazidos de territórios recém-ocupados, Donetsk serviu como uma espécie de estação intermediária a caminho de Moscou. Foi o caso de Ivan Matkovski, 16, que diz ter acabado num hospital da região ao fugir de um internato do governo em Mariupol e ser levado a um posto de controle russo.

Ele afirma que entre as outras crianças no hospital havia um menino de oito anos chamado Nazar, que tinha se escondido com a mãe em um teatro de Mariupol atingido por ataques aéreos —uma das atrocidades que definiram a guerra. Ele sobreviveu, mas não voltou a encontrar a mãe.

Autoridades de Mariupol contaram histórias semelhantes de crianças que sobreviveram ao ataque e acabaram em hospitais próximos. Vasil Mitko, funcionário público que ajudava no local, conta que uma criança chegou num carrinho com um bilhete escrito à mão: "Este é Micha. Por favor, ajude-o!".

Uma a uma, porém, as crianças desapareceram, prossegue Mitko. "Eles simplesmente levaram todas as crianças que ficaram sem pais", afirmou. "Ainda não sabemos onde elas estão."

'Nossos pequenos concidadãos'

O governo russo organiza com cuidado uma via de transferência das crianças da região de Donetsk para Moscou. Em maio, Putin instituiu um processo simplificado para nacionalizar menores ucranianos. Os primeiros meninos e meninas a chegarem no país, em abril, tornaram-se cidadãos russos em julho.

"Não reconheci aquelas crianças com quem viajamos no trem em abril para sua nova vida", afirmou Ksenia Michonova, comissária de direitos da criança para a região de Moscou em um comunicado. "Agora eles são nossos pequenos concidadãos!" Algumas crianças ficaram de fato órfãs ou foram abandonadas na Ucrânia e preferem viver na Rússia. A reportagem conversou com um adolescente de Mariupol que disse não ter família em seu país e que sua família adotiva o ama como se ele fosse um deles.

Outros desejam voltar. Ania contou que participa de uma aula semanal chamada Conversas sobre Coisas Importantes. A lição de meia hora, introduzida há pouco por Putin, ensina a ter orgulho da Rússia.

Às vezes, ela diz, chora imaginando se algo horrível aconteceu com sua família.

Após mais de um mês de investigação, os repórteres encontraram a mãe de Ania, Oksana, na Ucrânia. Sem emprego ou acesso à internet, vivendo com uma pequena pensão por invalidez, ela disse que não tinha ideia de como localizar sua filha em meio à guerra. "Estou procurando em todos os lugares, mas não consigo encontrá-la", diz. "Ela está me procurando."

A mãe disse não saber que Ania tinha sido levada para a Rússia. Os repórteres explicaram como mãe e filha poderiam se comunicar. A perspectiva de Ania voltar para casa, porém, não é clara. O governo da Ucrânia não explica como conseguiu recuperar dezenas de crianças da Rússia.

"Esse é realmente o telefone dela?", perguntou Ania.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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