Rússia perde influência em esfera soviética enquanto se distrai com Guerra da Ucrânia

Putin deixa de agir para conter crises em antigos aliados e aumenta desgaste na Ásia Central

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André Higgins
Fronteira Quirguistão-Tadjiquistão | The New York Times

Com o Kremlin distraído pela guerra a 2.400 quilômetros de distância, na Ucrânia, o domínio da Rússia sobre o antigo império soviético dá sinais de desmoronamento. Moscou perdeu sua aura e seu domínio, criando um vácuo desordenado que os antigos sátrapas soviéticos, antes obedientes, assim como a China, estão se movendo para preencher.

Nas estepes ladeadas por montanhas no sudoeste do Quirguistão, o resultado em uma aldeia remota foi devastador: casas reduzidas a escombros, uma escola incendiada e um terrível mau cheiro que emana das carcaças apodrecidas de 24 mil galinhas mortas.

Vladimir Putin comemora com líderes de regiões ucranianas recém-anexadas pela Rússia em evento no Kremlin - Dmitri Astakhov - 30.set.22/AFP

Todos foram vítimas, no mês passado, da pior violência que atingiu a área desde o colapso da União Soviética, em 1991 –um breve, mas sangrento, conflito fronteiriço entre Quirguistão e Tadjiquistão, ambos membros de uma aliança militar liderada pela Rússia dedicada a preservar a paz, mas que nada fez para deter o caos.

"Claro, eles estão distraídos com a Ucrânia", lamenta o presidente quirguiz, Sadir Japarov, em entrevista em Bishkek.

Antes de o presidente Vladimir Putin invadir a Ucrânia, a Rússia desempenhava um papel desmedido nos assuntos da Ásia Central e na volátil região do Cáucaso, que passou por uma distante "Pax Russica". Em janeiro, enviou tropas ao Cazaquistão para ajudar o governo a acalmar uma onda de violentos distúrbios. Em 2020, enviou 2.000 "mantenedores da paz" armados ao Cáucaso para impor uma trégua entre Armênia e Azerbaijão.

Hoje Ierevan está fumegando. O premiê Nikol Pashinian, que tem sido um aliado próximo, apelou em vão a Moscou no mês passado por ajuda para deter novos ataques azeris. Furiosa com a inação da Rússia, a Armênia agora ameaça deixar a aliança militar de Moscou, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva.

O governo cazaque que Putin ajudou a sustentar em janeiro está se afastando do roteiro do Kremlin sobre a Ucrânia e procurando ajuda da China para garantir o próprio território, que tem áreas habitadas principalmente por russos étnicos e que nacionalistas consideram pertencentes à Rússia.

E ao longo da fronteira montanhosa entre Quirguistão e Tadjiquistão, antigas disputas entre agricultores por terra, água e contrabando se transformaram em um conflito em grande escala envolvendo tanques, helicópteros e foguetes, enquanto os Exércitos lutavam até chegar a um impasse.

Segundo autoridades quirguizes, o conflito matou dezenas de civis e expulsou mais de 140 mil pessoas de casa. Também deixou muitos moradores e autoridades em Bishkek se perguntando por que Moscou —há muito vista como guardiã atenta da estabilidade nas margens inflamáveis do antigo império soviético— mal levantou um dedo.

"A Rússia poderia ter parado tudo isso em um segundo. Mas nada fez", diz Zainaddin Dubanaev, 75, professor de russo de uma escola incendiada em Ak-Sai, vila quirguiz próxima a um trecho cercado do território tadjique.

A aliança de segurança de Moscou há muito é apontada por Putin como a resposta da Rússia à Otan, a aliança ocidental, e uma âncora de seu papel como força dominante (e muitas vezes dominadora) em vastas áreas da antiga União Soviética. Mas agora o bloco mal está funcionando. Cinco de seus seis membros –Armênia, Belarus, Rússia, Tadjiquistão e Quirguistão– estiveram envolvidos em guerras neste ano, enquanto o sexto, o Cazaquistão, viveu violentos conflitos internos.

Em resposta, a China está novamente se afirmando, enquanto os EUA também veem abertura, pressionando o Quirguistão a firmar um novo acordo de cooperação bilateral. Ele substituiria um desativado em 2014, depois que a pressão russa forçou o fechamento de uma base aérea americana nos arredores de Bishkek, que havia sido criada para abastecer aviões de guerra que sobrevoavam o Afeganistão.

"Até a Ucrânia, China e Rússia não estavam interessadas numa competição aberta na Ásia Central", diz Asel Doolotkeldieva, professor da Academia OSCE em Bishkek, um centro de pós-graduação focado em questões de segurança. "Havia uma divisão tácita: segurança para a Rússia, economia para a China. Mas Moscou não está mais fazendo seu trabalho. Mostrou que é incapaz ou não quer proteger a região."

O presidente do Quirgusitão, Sadir Japarov, em sua casa em Bishkek - Serguei Ponomarev - 30.set.22/The New York Times

A Rússia ainda tem uma tremenda influência na Ásia Central. Sua maior base militar estrangeira fica no Tadjiquistão, e há uma pequena base aérea no Quirguistão, país pobre e remoto que continua fortemente dependente do fornecimento de energia de Moscou e das remessas de dinheiro de mais de 1 milhão de trabalhadores quirguizes na Rússia.

Japarov, ciente da vulnerabilidade, vacilou na assinatura do novo acordo com os EUA. Fazer isso seria percebido em Moscou como uma "punhalada nas costas —e eles estariam certos".

"A Rússia está obviamente focada em outras coisas agora, não na Ásia Central, mas no momento em que quiser estabelecer a lei, só precisa dar a entender que dificultará a vida dos trabalhadores migrantes", diz Peter Leonard, editor da Ásia Central na Eurasianet, canal de mídia sobre a região.

Mas a recente guerra de fronteira entre Quirguistão e Tadjiquistão abalou antigas suposições sobre o poder russo. Ela eclodiu quando Putin estava no vizinho Uzbequistão para uma reunião de cúpula de um grupo regional patrocinado pela China, a Organização de Cooperação de Xangai, que contou com a presença de Xi Jinping e de líderes de Índia, Turquia, Azerbaijão e quatro países da Ásia Central.

Ofuscado pelo líder chinês, Putin suportou uma série de humilhantes confusões protocolares que o deixaram esperando desajeitadamente diante das câmeras enquanto outros líderes, incluindo Japarov, apareciam atrasados para encontrá-lo. "É claro que isso não foi deliberado", diz o quirguiz. "Nenhum desrespeito foi pretendido."

Mas vídeos amplamente divulgados de Putin com aparência desconfortável; uma repreensão pública do primeiro-ministro da Índia, afirmando que "a era de hoje não é de guerra"; e um reconhecimento do líder russo de que a China tinha "perguntas e preocupações" sobre a Guerra da Ucrânia reforçaram uma imagem de influência e atração cada vez menores.

"Putin não é mais o grande líder invencível que todos querem conhecer", afirma Emil Djuraev, pesquisador em Bishkek do grupo de pesquisa Crossroads Central Asia. "Ele perdeu sua aura."

Por outro lado, Xi tornou-se mais assertivo. Em uma visita ao Cazaquistão no mês passado, ele prometeu "apoiar resolutamente o país na defesa de sua independência, soberania e integridade territorial", observação amplamente interpretada como um aviso a Moscou para não tentar nada.

Mercado de rua em Orlovka, no Quirguistão, com estátua de Vladimir Lênin ao fundo - Serguei Ponomarev - 27.set.22/The New York Times

Alguns dias depois, após o avanço das forças tadjiques, a China emitiu uma promessa semelhante em relação ao Quirguistão, reforçando o antigo papel da Rússia como guardiã das fronteiras da Ásia Central.

Autoridades em Bishkek se perguntam se a Rússia aprovou a ação militar do Tadjiquistão, uma ditadura rigidamente controlada pelo mesmo líder desde 1994 —ainda mais tempo do que Putin está no Kremlin. O Quirguistão, por outro lado, é considerado o único país da Ásia Central com um mínimo de democracia real e uma imprensa relativamente livre.

A visão do Putin aliado ao Tadjiquistão —em vez de ser um árbitro imparcial entre dois membros de sua aliança militar— ganhou mais terreno na semana passada, quando o Kremlin declarou que ia dar ao veterano ditador tadjique, Emomali Rahmon, um prestigioso prêmio estatal por sua contribuição para a "estabilidade e segurança regional". A chancelaria do Quirguistão disse que o prêmio, anunciado "enquanto o sangue de inocentes ainda não esfriou em solo quirguiz", causou perplexidade.

"O aspecto perverso disso é que ambos os lados são membros da mesma aliança militar que a Rússia comanda", diz Leonard. "Os dias em que a Rússia ditava a postura militar desses países claramente foram pela janela."

O chefe da administração distrital, Jorobaev Imamalievitch, se dez consternado. "A Rússia ficou em silêncio. Está ocupada na Ucrânia e não está prestando atenção. Simplesmente não está mais aqui."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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