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Kerry Brown

Xi Jinping é tão prisioneiro do Partido Comunista quanto a legenda é do líder chinês

País asiático voltou a ser forte, e a única responsabilidade de seu dirigente é não atrapalhar isso

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Kerry Brown

Ex-diplomata, é diretor do Lau China Institute do King’s College de Londres e autor de vários livros sobre a política chinesa

The New York Times

Aos olhos ocidentais, o líder Xi Jinping, da China, pode parecer um exemplo rematado de governante despótico, com o poder concentrado na mão de um só indivíduo. E com razão.

Desde que assumiu a liderança do Partido Comunista Chinês, uma década atrás, ele descartou um arranjo de partilha de poder que existia entre as diferentes facções da legenda, transformando uma das maiores organizações políticas do mundo em um todo unificado no qual suas palavras, seus pensamentos e seu rosto estão em toda parte.

Discursando em 2016, Xi usou uma frase dita certa vez por Mao Tse-tung, descrevendo o partido como o "leste, oeste, sul, norte e centro" da China. Poderia igualmente estar falando dele próprio.

Imagem mostra telão exibindo o líder chinês, Xi Jinping
Telão mostra o líder chinês, Xi Jinping, durante celebração do centenário da fundação do Partido Comunista da China, em Pequim - Noel Celis - 28.jun.22/AFP

No Congresso do Partido Comunista, que vai começar no próximo domingo (16), Xi está preparado para aceitar um inusitado terceiro mandato de cinco anos como líder.

Sua capacidade de acumular tanto poder incontestado é inesperada para alguns e inclusive indesejada. Foi presumido por muitos, por bons motivos, que a China é complexa, vasta e capitalista demais para poder evitar alguma forma de pluralismo político.

As redes sociais, a classe média ascendente e a modernização geral levariam a isso, pensou-se. Em vez disso, Xi vem conduzindo a China na direção oposta e parece ser capaz de estender seus tentáculos para além das fronteiras de seu país.

Mas como foi possível isso acontecer com tanta facilidade relativa, sem derramamento de sangue? Certamente não pode ser apenas graças à vontade de uma única pessoa.

Apesar de toda a fixação sobre Xi, em última análise a vida dele, seus objetivos e sua política não dizem respeito realmente a ele, e sim ao Partido Comunista. Existe de fato um autocrata que governa a China moderna, mas é o partido ao qual Xi serve, e não o próprio Xi Jinping. E, de uma maneira estranha, Xi é tão prisioneiro do partido quanto são todos os outros chineses.

Seu lugar na história chinesa depende de ele conseguir assegurar que o domínio do partido perdure muito depois de sua própria saída de cena, para que possa realizar a meta fundamental do partido: restaurar a China a seu papel antigo de uma grande nação digna de seu nome chinês: "Zhongguo", ou "o país do meio".

Essa missão está sendo construída desde antes dos saques e devastações que a China sofreu às mãos de nações ocidentais nos séculos 19 e 20, seguidos pela queda do governo imperial chinês em 1912 e pela selvagem invasão japonesa durante a guerra. O Partido Comunista recolheu os cacos de uma nação fraturada.

O poder de Xi Jinping vem da meta nacionalista do partido de apagar aquelas vergonhas do passado e restaurar a força da China e seu controle sobre territórios "perdidos" como Taiwan. A política externa baseada na busca de vingança e no desejo de reconquistar territórios perdidos pode ser o que motiva as ações do presidente russo Vladimir Putin, mas é o sangue que corre nas veias do Partido Comunista chinês.

Xi Jinping é filho de um antigo líder da elite, Xi Zhongxun, e com ele aprendeu pelo menos uma lição: continue fiel ao partido sempre, não importa como ele trate você.

Vitimado por um dos expurgos da era de Mao, o pai de Xi passou anos em prisão domiciliar e só foi reabilitado politicamente após a morte de Mao. Durante a Revolução Cultural, estudantes militantes maoístas depredaram a casa da família, e uma das irmãs de Xi Jinping morreu no caos. Seu pai foi exibido em praça pública como inimigo do povo, e sua mãe foi forçada a denunciá-lo.

Xi Zhongxun acabou sendo mandado para o exílio na zona rural por sete anos, como parte da campanha de Mao para fazer pessoas "aprender com os camponeses".

A experiência endureceu Xi Jinping, mas ele permaneceu leal ao partido. Um amigo seu daquela época conturbada recordou um jovem com uma aura de predestinado, um "pequeno príncipe" comunista que enxergava a liderança do partido como seu direito inato e que "tinha os olhos fixos no grande prêmio", segundo um relatório sigiloso de 2009 compilado pela embaixada dos EUA em Pequim. Convencido de que apenas o partido poderia restaurar a força da China, Xi não podia ser corrompido pela promessa de ganhos materiais, disse seu velho amigo. A questão era se ele sucumbiria ao delírio do poder.

Quando ele assumiu a liderança, em 2012, a transição capitalista da China já estava concluída, mas novos problemas haviam surgido. A década passada sob o comando de seu predecessor, Hu Jintao, foi marcada por oportunidades perdidas; a grande missão de restauração nacional parecia ter sido esquecida. Funcionários locais corruptos governavam suas regiões como pequenos tiranos e protestos corriam soltos contra a repressão do regime, a corrupção deslavada, as más condições de trabalho e a poluição colossal.

As campanhas anticorrupção que dominaram os primeiros anos de Xi no poder frequentemente foram vistas como maneira de disfarçar a eliminação de adversários. Mas Xi era motivado principalmente pela missão maior de tornar o partido mais eficiente e restaurar sua imagem.

É espantoso quão pouca resistência ele encontrou e encontra. Por temível que Mao tenha sido, mesmo ele se deparou com oposição às suas políticas utópicas destrutivas. Deng Xiaoping encontrou resistência às suas reformas de mercado, e Jiang Zemin enfrentou forças que queriam reformas ainda maiores. Mas com Xi Jinping praticamente não tem sido vista nenhuma dissensão no partido, excetuando rumores ocasionais de resmungos internos e algumas deserções de funcionários de escalões inferiores.

Parte da razão disso é a força da missão nacionalista, que atrai os cidadãos chineses muito mais que a lógica fria do marxismo-leninismo. As manifestações de orgulho patriótico durante as Olimpíadas de Inverno em Pequim, em fevereiro, foram sinceras, assim como os sentimentos de raiva e mágoa quando os Estados Unidos e outros culparam a China pela pandemia. Mesmo os chineses que podem rejeitar o Partido Comunista ainda amam seu país.

Xi tem tido a sorte de conseguir aproveitar os avanços de seus predecessores. Mas ele também sido habilidoso. A internet poderia ter ameaçado o governo autoritário centralizado, mas o regime tem utilizado algoritmos, reconhecimento facial e vigilância eletrônica de massa para afirmar poder do partido de modo mais onipresente.

A China, que durante boa parte do século 20 foi um país tecnologicamente atrasado, hoje possui a tecnoautocracia mais avançada do mundo.

O vigor notável do estilo de Xi não se deve inteiramente a ele ou a seus objetivos, ambições ou ego particulares (se bem que ele muito possivelmente os tenha). A China voltou a ser forte, e a única responsabilidade de Xi é não atrapalhar isso. É por isso que sua liderança é tão avessa a riscos e que os dissidentes são tão energicamente sufocados.

A repressão sistemática em Xinjiang é a manifestação mais extrema da obsessão de Xi com a preservação da estabilidade, mesmo incorrendo o risco de críticas internacionais e sofrimento doméstico. O mesmo se aplica à política irredutível de Covid zero.

Esses e outros exemplos de disciplina e controle são comparáveis às diretivas de um comandante que se prepara para a suprema batalha final antes da vitória: a restauração da China como grande potência. Quiçá algum dia seja até possível fazer a China ultrapassar os Estados Unidos como maior economia mundial. Xi e seus colegas no partido sabem que um único passo em falso pode colocar tudo a perder.

É claro que algum dia Xi Jinping vai sair de cena. Mas seu ethos de liderança permanecerá: o projeto vasto de engrandecer a persona pública do líder chinês do momento, protegendo-o contra todas as ameaças e mantendo a atenção totalmente focada sobre tornar a China mais forte, mais respeitada, até temida. Já se investiu demais nisso.

Tradução de Clara Allain

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