Ucrânia usa memes para provocar a Rússia e fazer propaganda em redes sociais

Estratégia digital de Kiev inclui montagens irônicas e imagens fofinhas de soldados com animais

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São Paulo

"Gestos românticos vêm em muitas formas", diz a abertura de um vídeo publicado pelo Ministério da Defesa da Ucrânia no Twitter. Buquês de flores, chocolates e a torre Eiffel surgem na tela ao som de "Je T’Aime, Moi Non Plus", célebre música de Serge Gainsbourg em que um casal reproduz em detalhes uma relação sexual —gemidos inclusos.

Os desavisados podem ter dúvidas sobre um possível ataque hacker contra a pasta responsável por garantir a defesa do país em guerra com a Rússia há quase oito meses. Até que o vídeo anuncia a que veio.

"Se você realmente quer ganhar nossos corações, nada supera artilharia móvel com munição de autopropulsão de 155 milímetros", continua a peça, intercalando cenas do front da Guerra da Ucrânia e fotos sorridentes de Volodimir Zelenski e Emmanuel Macron juntos.

"'Merci beacoup', França! Por favor nos mandem mais desses", finaliza o vídeo, que exibe os armamentos produzidos pelos franceses e enviados para reforçar o arsenal ucraniano.

A montagem foi publicada horas depois de Paris sinalizar que pretende mandar mais armas a Kiev, na semana passada. É uma forma de pressionar o governo francês a cumprir a promessa —a principal requisição de Zelenski é de sistemas antiaéreos, seguindo a onda de ataques da Rússia a cidades ucranianas, o mais amplo desde o início da guerra.

A peça é uma de muitas publicações irônicas em contas de órgãos oficiais e de autoridades ucranianas em redes sociais a se multiplicarem desde o final de julho, quando Kiev ampliou os movimentos de sua contraofensiva, ainda que estivessem presentes em maior ou menor grau desde o início dos conflitos.

Conteúdos do tipo foram utilizados, por exemplo, para "comemorar" a explosão da ponte que liga a Rússia continental à Crimeia. É o caso de um vídeo publicado pelo chefe do Conselho Nacional de Segurança e Defesa, Oleksii Danilov, que exibe a megaestrutura em chamas ao lado de Marilyn Monroe cantando "feliz aniversário, senhor presidente" —Vladimir Putin havia completado 70 anos na véspera.

Mikhailo Podoliak, principal assessor do gabinete de Zelenski, usou uma cena de "Harry Potter" mostrando Dolores Umbridge, uma das vilãs mais detestadas pelos fãs da saga do jovem bruxo, para ilustrar um comentário sobre crianças ucranianas que estão sendo levadas e criadas na Rússia.

Antes disso, em agosto, depois da explosão de uma base militar russa na Crimeia, o mesmo Ministério da Defesa publicou um alerta sobre os perigos de fumar, insinuando que os próprios russos haviam incendiado o local ao deixarem para trás bitucas de cigarro acesas. Nota-se que em nenhuma das postagens os ucranianos reivindicam a autoria dos ataques.

Professor de relações internacionais da Universidade de Oxford e especialista em diplomacia digital, Corneliu Bjola diz que a princípio se surpreendeu com os memes ucranianos. Afinal, em um contexto como o de uma guerra, de muita brutalidade e sofrimento, o humor poderia facilmente sair pela culatra.

homem moreno de cabelos curtos encaracolados veste camisa social sem gravata branca e terno preto
Corneliu Bjola, professor de relações internacionais da Universidade de Oxford e especialista em diplomacia digital - Divulgação

À medida que analisou as postagens, no entanto, compreendeu que elas representam uma estratégia para manter o apoio dos países ocidentais à Ucrânia —sem o qual ela seria inevitavelmente derrotada. "E o melhor jeito de fazer isso não é com discussões entre Estados, mas falando diretamente com o público estrangeiro, que pode por sua vez exercer pressão sobre seus respectivos governos", diz.

Os memes cumprem uma série de funções nesse sentido. Uma delas é mostrar ao exterior, a princípio cético em relação ao potencial da resistência ucraniana, que o povo não só é capaz de lidar com a adversidade, como é militarmente hábil.

As mesmas publicações também servem para levantar a moral interna no plano doméstico. E ajudam a minar a narrativa de intimidação russa, insinuando que as tropas de Putin não são tão fortes ou capazes quanto alegam.

Bjola diz que há ainda outro importante motivo para a adoção dos memes na comunicação ucraniana. Antes da guerra, ele afirma, havia um grande desconhecimento sobre o país de Zelenski, no geral visto como mais um Estado corrupto da antiga União Soviética com problemas não muito claros com Moscou.

As postagens representariam, assim, uma espécie de cartão de visitas da Ucrânia ao Ocidente, buscando ao mesmo tempo diminuir a distância entre eles e seus aliados e se opor à retórica de Putin de que os cidadãos da nação invadida nada mais são do que russos separados da pátria-mãe. Não é à toa que as montagens têm legendas em inglês e fazem tantas referências à cultura pop americana, afirma o professor.

"Eles dizem: ‘somos como vocês’", explica Bjola, acrescentando que, se bem-sucedida, a tática pode trazer grandes vantagens. Isso porque, quando um Estado reconhece outro como um igual, "defendê-lo equivale a defender a si mesmo".

As funções listadas pelo pesquisador para os memes ucranianos condicionam em grande medida a natureza deles. Além de caricaturas de Putin e de suas tropas, outras publicações recorrentes incluem montagens de cenas de batalha com trilhas sonoras românticas e fotografias de soldados ucranianos interagindo com cachorros e gatos —há inclusive um perfil no Twitter exclusivo para isso.

Bjola conta ainda que essa estratégia não nasceu agora, mas depois da invasão da Crimeia, em 2014, com a criação de uma unidade estratégica de comunicação digital pelo Ministério das Relações Exteriores. Foi então que, junto a ferramentas como sanções virtuais e financiamentos coletivos, gifs e memes de "Os Simpsons" começaram a aparecer no material de propaganda de Kiev.

A iniciativa foi liderada por Dmitro Kuleba, atual ministro da pasta. E incluiu uma atenção especial ao Twitter, ferramenta oportuna por reunir a elite da política e do jornalismo no Ocidente, segundo o professor. O esforço rendeu frutos e se espalhou para muito além das camadas superiores do governo, de prefeitos a soldados no front.

As postagens sarcásticas tendem a decair quando a Ucrânia tem grandes perdas ou é palco de atrocidades como a de Butcha, subúrbio de Kiev em que centenas de corpos foram encontrados nas ruas e em valas comuns após a retirada de tropas russas. As piadas também diminuíram bastante em junho e em julho, quando as forças ucranianas sofreram sucessivas derrotas.

Os canais oficiais da Rússia, por sua vez, têm apostado em uma comunicação digital mais austera, ecoando por exemplo as ameaças de uso de armas nucleares feitas por Putin. "Ela quer romper a conexão da Ucrânia com os países ocidentais. Para isso, é preciso intimidar, retratar a si mesma como muito agressiva, disposta a fazer o que for preciso para vencer", analisa Bjola.

É uma quebra de paradigma em relação ao histórico do governo russo, que costumava usar paródias contra líderes ocidentais e repelir críticas sobre supostas interferências de Moscou em outros países.

Em 2014, quando a Otan publicou imagens de satélite mostrando tanques de Putin invadindo a Crimeia, por exemplo, embaixadas russas tuitaram imagens de veículos de brinquedo e os descreveram como a evidência mais convincente que a aliança militar ocidental tinha em mãos.

Com Reuters

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