Crises como Covid reduzem expectativa de vida e devem ser mais frequentes com 8 bilhões

Desigualdade global, urbanização acelerada e transição demográfica colocam sistemas de saúde à prova

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São Paulo

A Covid reduziu a expectativa de vida global em quase dois anos, de 72,8 para 71 anos, ampliou desigualdades e expôs fragilidades dos sistemas de saúde para cuidar desses 8 bilhões de habitantes.

O cenário de risco começou a ser desenhado bem antes da maior crise sanitária mundial e não foi encerrado com ela. Entre os especialistas em saúde global, há a certeza de que novas epidemias se avizinham. Só não sabem quando e quão graves serão.

Mulher visita cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, no Dia das Mães de 2021 - Michael Dantas - 9.mai.21/AFP

Entre as causas estão as desigualdades sociais cada vez mais marcantes e o movimento de urbanização acelerado ocorrido nas últimas décadas na América Latina, na Ásia e na África, que produziu cidades sem infraestrutura necessária, como redes de saneamento básico. Isso teve um impacto direto sobre algumas doenças, como a dengue, que veio a reboque do ressurgimento do aedes aegypti nos anos 1970.

"A falta de infraestrutura faz com que as pessoas mais pobres armazenem água como podem, em barris, em contêineres. Isso propiciou um ambiente muito favorável ao aedes", explica o médico Jarbas Barbosa, novo diretor-geral da Opas (Organização Panamericana de Saúde), que toma posse em fevereiro de 2023.

A falta de planejamento também aproximou das áreas urbanas problemas de saúde até então concentrados em áreas rurais, como a hantavirose, doença causada por vírus transmitido por roedores. "Alguns dos surtos que tivemos na América Latina estavam relacionados à construção de condomínios e de conjuntos habitacionais em áreas que antes eram silvestres", explica Barbosa.

A maior epidemia de ebola na África Ocidental, entre 2013 e 2015, que levou a OMS a declarar estado de "emergência sanitária mundial", é outro exemplo. "O vírus não mudou, as circunstâncias, sim. No passado, o ebola provocava surtos autolimitados, em aldeias isoladas. Em 2015, passou a ser uma epidemia nas grandes cidades pobres, com tremendo potencial de disseminação", diz Barbosa.

Deisy Ventura, professora titular de ética da USP e que coordena o programa de pós-graduação em saúde global e sustentabilidade, reforça a relação do ambiente com as crises sanitárias: "Na região que foi o epicentro da crise do ebola, os mapas de desmatamento coincidem com os mapas de casos. O morcego não tem mais bosque e vai para as casas das periferias."

A pandemia de Covid, cujo início se atribui a um mercado em Wuhan, na China, também está relacionada à migração de pessoas das zonas rurais para as urbanas, diz Barbosa. "Aquele intercâmbio de animais e vírus que antes estava limitado às aldeias passa a ter grande potencial de expansão. Quantos mercados como aquele de Wuhan nós temos nas periferias pobres da Ásia, da África e da América Latina? Milhares."

Ventura, da USP, afirma que em maio de 2023 deve ser adotado um novo regulamento sanitário internacional para fazer frente a essas novas ameaças. A última versão do documento é de 2005.

Ao mesmo tempo, discute-se a criação de um tratado internacional sobre pandemias. "A grande questão é a flexibilização da propriedade intelectual para o enfrentamento de situações como a que o Tedros Adhanom [diretor-geral da OMS] chamou de apartheid vacinal", diz a professora.

Em julho de 2021, o termo foi usado para descrever cenários em que a maior parte dos não vacinados assim estava não por escolha individual ou posicionamento anticiência, mas por falta de doses. "Até agora a gente continua com uma concentração brutal de vacinas nos países mais ricos", analisa Ventura.

Para ela, porém, o perigo de novos regulamentos está em tratar os sintomas sem atacar as causas. Isto é, aumentar a vigilância dos países em desenvolvimento para que cumpram regras sanitárias, em matéria de notificação e informação, mas sem resolver problemas estruturais que podem provocar pandemias.

A especialista defende que o enfrentamento das desigualdades em saúde é crucial sob todos os aspectos, incluindo o ético e o da segurança. Para tal, seria necessário retomar debates sobre a cobertura universal de saúde, interrompidos desde o início da crise sanitária. Mais de 800 milhões de pessoas (quase 12% da população mundial) gastam pelo menos 10% dos seus orçamentos familiares em cuidados de saúde.

Todos os Estados membros das Nações Unidas concordaram em tentar atingir a cobertura universal de saúde até 2030, como parte dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Uma das propostas é uma espécie de "cesta básica" de serviços de saúde.

"O intervalo entre essas crises sanitárias será cada vez menor. Antes de acabar a Covid já tínhamos a varíola dos macacos. Não adianta tapar o sol com a peneira, vai ser uma crise atrás da outra", diz Ventura.

"A gente não mudou nossa forma de produção de alimentos, nossa relação com os animais [em confinamento para abate], a urbanização só degringola, a concentração de renda só aumenta, a crise climática, o desmatamento. Não tem nada melhorando."

A acelerada transição demográfica, principalmente na América Latina e na Ásia, é outro grande desafio dentro do cenário de superpopulação. Por exemplo: a doença de Alzheimer e outras demências, que há 30 anos não tinham peso epidemiológico nessas regiões, agora estão entre as dez primeiras.

Estimativas da ONU mostram que a expectativa média de vida ao nascer, que em 1950 girava em torno de 46 anos, agora está em 73,4 —após se recuperar da queda na pandemia. Outro indicador importante, o de mortalidade infantil, caiu: morrem 26,7 bebês a cada mil nascidos vivos. Há 70 anos, eram 143 a cada mil.

Barbosa pondera que viver mais não significa viver melhor. A expectativa de vida cresce mais que a proporção de anos de vida saudável, isto é, as pessoas estão envelhecendo mal. Faltam investimentos em promoção de saúde, prevenção e diagnóstico precoce de doenças evitáveis como diabetes e hipertensão.

O médico avalia que grande parte dos países não preparou seus sistemas sociais e de saúde para esses desafios. Além de recursos escassos, faltam formação, capacitação de profissionais e adequação da atenção primária para lidar com problemas associados ao envelhecimento.

Para isso, países em desenvolvimento precisam aumentar o financiamento da saúde. "Se não houver pelo menos 6% do PIB de gasto público em saúde, a gente não consegue ter um sistema de acesso universal com o mínimo de qualidade." No Brasil, gastos públicos representam 3,8% do PIB, e privados, 5,8%.

Colaborou Mayara Paixão, de Guarulhos

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