Descrição de chapéu The New York Times

Daniel Smith, último filho de uma pessoa escravizada nos EUA, morre aos 90

Ele se referia a si mesmo como 'Forrest Gump negro' depois de testemunhar da Marcha de Washington à posse de Obama

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Clay Risen
The New York Times

Morreu em Washington em 19 de outubro Daniel Smith, considerado o último filho sobrevivente de uma pessoa escravizada. Durante sua vida longa e movimentada, ele testemunhou em primeira mão muitos dos momentos principais da experiência afro-americana. Tinha 90 anos.

Sua esposa, Loretta Neumann, disse que a causa da morte foi falência cardíaca e câncer na bexiga.

Daniel Smith em entrevista à AFP em sua casa, em Washington - Nicholas Kamm - 5.ago.20/AFP

O pai de Smith, Abram Smith, nasceu como um escravizado na Virgínia durante a Guerra Civil americana e tinha 70 anos quando sua esposa, Clara, muito mais jovem que ele, deu à luz a Daniel em 1932. Embora seja impossível determinar ao certo se Daniel Smith foi o último filho vivo de uma pessoa escravizada nos Estados Unidos, historiadores que estudaram sua geração dizem não ter conhecimento de outros.

Funcionário federal aposentado, Smith nasceu em Connecticut e costumava dizer que teve uma vida tranquila, sem grandes emoções. Mas também se comparava, brincando, a um "Forrest Gump negro": ele tomou parte na Marcha a Washington em 1963, atravessou a ponte Edmund Pettus, em Selma, no Alabama, com Martin Luther King Jr. em 1965 e esteve na plateia para assistir à primeira posse de Barack Obama como presidente em 2009.

Em 2021 Smith falou à Economist sobre as histórias que seu pai contava: "Me lembro de ouvir sobre dois escravos que estavam acorrentados juntos pelos pulsos e tentaram fugir. Foram encontrados por cães ferozes escondidos debaixo de uma árvore e foram enforcados nela."

O próprio Daniel Smith também enfrentou racismo feroz. Em meados da década de 1950, quando trabalhava num acampamento da Associação Cristã de Moços no Connecticut, ele viu uma mulher branca ser resgatada de uma pedreira inundada, desmaiada mas ainda viva. Começou a fazer RCP (reanimação cardiopulmonar) nela, mas um policial branco o mandou parar. Enquanto Smith assistia, incrédulo, a mulher morreu.

"Isso é racismo no máximo", disse a Martin Dobrow, professor do Springfield College, –onde Smith estudou– quando foi entrevistado para um artigo em 2020. "Ele deixou a garota morrer, preferindo isso a ver um negro tocar os lábios dela. Nunca me esquecerei disso."

Mas seu pai também o imbuiu de ambição e de uma consciência aguda de seu próprio valor. Apesar de terem crescido pobres, Daniel Smith e vários de seus irmãos fizeram faculdade e tiveram empregos de classe média.

"Daniel Smith representa o aspecto de sobrevivência da escravidão", disse em entrevista telefônica a historiadora Sana Butler, autora de "Sugar of the Crop: My Journey to Find the Children of Slaves" (2009). "No caso de 90% das pessoas que entrevistei, seus pais lhes disseram para darem o melhor de si."

Daniel Smith sonhou ser veterinário. Ele começou a fazer pós-graduação no Instituto Tuskegee, historicamente negro, no Alabama, e então se envolveu no movimento dos direitos civis. Quando partiu para o estado, um amigo de sua mãe lhe ofereceu uma pistola para sua proteção. Smith não aceitou.

Ele viveu quatro anos no Alabama, ajudando a comandar um programa de alfabetização de adultos e depois dirigindo uma iniciativa de combate à pobreza no condado rural e pobre de Lowndes.

Incendiários criminosos atearam fogo à igreja onde ele tinha seu escritório. Uma noite, quando Smith voltava para casa de carro e passava por um trecho de estrada sem iluminação, um carro cheio de homens brancos chegou atrás dele em alta velocidade e bateu em seu para-choque. Os homens o xingaram com palavrões racistas e tentaram jogá-lo na valeta.

"Se tivessem me pegado, eu teria morrido", contou ao New York Times em 2013.

Mas ele também viveu momentos de alegria. Um amigo o persuadiu a viajar de carro de Connecticut em 1963 para participar da histórica Marcha a Washington. Entrando na cidade no meio de dezenas de milhares de outros carros, eles se perderam.

"De repente um policial de moto nos parou", contou ao NYT. "Nós nos esforçamos para ficar calmos."

Em vez de assediá-los, como eles previam, o policial perguntou se eles tinham onde se hospedar. Quando disseram que não, ele os levou até a casa de uma família branca onde descansaram em sacos de dormir ao lado de 20 outras pessoas que participariam da marcha.

"Senti que aquele era o início de uma nova era para os americanos negros –que os brancos começaram a ter mais respeito pelos negros", disse Smith. "Daquele momento em diante, pensei: ‘a América é a América. Ela virou aquilo que a Constituição representa.’"

Smith permaneceu otimista apesar de todo o resto que testemunhou nos anos 1960 –ele se mudou para Washington em 1968, semanas apenas antes de o assassinato de Martin Luther King desencadear dias de protestos violentos na cidade, mas sentiu que seu idealismo estava sendo recompensado quando viu o primeiro presidente negro tomar posse.

Daniel Robert Smith nasceu em 11 de março de 1932 em Winsted, a noroeste de Hartford, em Connecticut. Seu pai nascera escravizado em Massies Mill, uma pequena comunidade a sudoeste de Charlottesville, na Virgínia. Como muitas pessoas escravizadas, Abram Smith nunca soube qual foi sua data precisa de nascimento, mas pensava ter nascido em 1862 ou 1863.

Quando o fim da Guerra Civil levou à emancipação dos escravos da Virgínia, Abram Smith continuou a trabalhar em Massies Mill por alguns anos. Depois disso migrou para o norte, primeiro para Filadélfia e depois para Poughkeepsie, em Nova York, antes de se radicar em Winsted, onde encontrou trabalho como zelador na Gilbert Clock, a maior empresa da cidade.

Em Winsted, Abram conheceu a mulher que se tornaria sua terceira esposa, Clara Wheeler, quase 40 anos mais jovem que ele. Ele morreu atropelado por um carro quando Daniel tinha 6 anos. Depois disso, a mãe de Daniel teve vários empregos como doméstica.

Daniel também trabalhava: antes e depois do horário escolar, trabalhava longas horas como assistente de veterinário. Durante a Guerra da Coreia ele se alistou no Exército, na esperança de ser incluído numa unidade que trabalhava com cães. Mas as Forças Armadas ainda estavam no processo de segregação racial e lhe disseram que esse tipo de trabalho não era permitido para negros.

Ele voltou para casa para estudar no Springfield College, em Massachusetts. Em 1957, ocupou manchetes como herói local quando, durante uma enchente que causou 87 mortes, resgatou um caminhoneiro de um rio cujas águas haviam subido muito. O caso foi narrado pelo jornalista John Hersey numa reportagem publicada em múltiplos veículos.

Apesar de ter sido um entre apenas um punhado de estudantes negros em Springfield e de raramente ser incluído nas atividades sociais da faculdade, seus colegas gostavam dele e o elegeram para presidente do grêmio estudantil. Smith se formou em 1960 com diploma de estudos gerais e depois passou três anos como assistente social antes de partir para o Alabama.

Ele se mudou para Washington para trabalhar no Escritório de Oportunidade Econômica, o carro-chefe do programa Great Society, do presidente Lyndon B. Johnson. Ali, Smith desenvolveu centros de saúde de bairro em áreas rurais e carentes e, em 1972, lançou um programa federal que levou médicos a essas áreas.

Mas ele também enfrentou discriminação de um administrador branco, incluindo a ameaça de rebaixamento. Smith resistiu e, com assistência jurídica gratuita de uma conceituada firma de advocacia de Washington, ganhou o processo e, de quebra, um aumento salarial.

Mais tarde ele criou centros de saúde emergenciais no Líbano, Marrocos e África do Sul. Em 1986, acompanhou no local a posse de Desmond Tutu como arcebispo da Cidade do Cabo.

Depois de se aposentar, em 1994, Smith trabalhou como lanterninha voluntário na Catedral Nacional de Washington. Ele acabou se tornando o lanterninha chefe, tendo conduzido três presidentes –George Bush, Bill Clinton e George W. Bush— e suas famílias a seus assentos.

Seu primeiro casamento, com Sandra Hawkins, terminou em divórcio. Smith se casou com Loretta Newman em 2006 numa cerimônia na Catedral Nacional. Ele deixa, além de Newman, sua filha, April Motaung, seu filho, Daniel, e uma neta.

Ele e sua esposa se aposentaram em Takoma, um bairro arborizado da zona noroeste de Washington, onde ele escreveu uma autobiografia publicada este ano: "Son of a Slave: A Black Man’s Journey in White America".

Tradução de Clara Allain

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