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George Martine

Grande pergunta não é mais como reduzir o crescimento da população

Mudanças climáticas renderão inabitáveis regiões importantes da Ásia e da África; prevê-se a maior diáspora da história

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George Martine

Consultor independente, foi diretor do UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas) para a América Latina e Caribe e presidente da Associação Brasileira de Estudos Populacionais

Em 2011, quando mundo atingiu a marca de 7 bilhões de habitantes, a Folha convidou dois demógrafos para explicar suas visões sobre o crescimento populacional de então. José Eustáquio Diniz Alves tinha uma visão otimista e George Martine, pessimista. Onze anos depois, com o planeta superando os 8 bilhões, ambos foram chamados novamente para contar se mantêm ou revisam sua posição.

Leia abaixo a opinião de Martine e, neste link, a de Alves.

Apesar de uma pletora de guerras, pandemias, desastres naturais e não naturais, a população mundial continua crescendo e chega, impávida, a 8 bilhões de pessoas. Como sempre, esta marca levantará debates acalorados sobre como controlar o aumento demográfico devido às crises ambientais. Hoje, porém, essa é uma discussão improdutiva, por várias razões.

Pedestres atravessam rua em Xangai, na China - Hector Retamal - 24.out.22/AFP

Primeiro, porque os contornos gerais da trajetória futura já estão praticamente determinados pela inércia da dinâmica demográfica. As projeções da ONU mostram que, na ausência de guerras nucleares ou políticas de extermínio, passaremos certamente de 10 bilhões de pessoas antes de começar a retroceder e voltar aos 8 bilhões atuais no final deste século.

Na prática, o que resta fazer em relação ao aumento demográfico é melhorar as condições de saúde reprodutiva das mulheres no mundo, mas isso só afetará o crescimento populacional no médio e no longo prazos.

Segundo, porque uma unidade populacional (i.e. uma pessoa) nesses bilhões não é equiparável a todas as outras. A responsabilidade pela problemática ambiental reflete essa desigualdade. As populações mais ricas crescem pouco, mas pesam muito na conformação de qualquer catástrofe planetária. Os estratos populacionais de maior crescimento demográfico contribuem menos para a crise ambiental, mas sofrem mais os seus efeitos.

Terceiro, porque muito antes de se inverter naturalmente a tendência do crescimento populacional global, a humanidade precisará enfrentar decisivamente os problemas estruturais que condicionam a crise ambiental. A ciência nos alerta que faltam poucas décadas para o provável colapso de alguns sistemas planetários se não houver mudanças drásticas na organização social da nossa dita "civilização".

Quarto, porque as questões que surgirão na área demográfica durante as próximas décadas são bem mais complexas do que o crescimento. De fato, a atenção global será inevitavelmente voltada para a migração internacional. Como dramatizado em recentes conflitos na Síria e na Ucrânia, a desgovernança global favorece a explosão do número de refugiados e despovoados.

O aumento do calor provocado por mudanças climáticas renderá inabitáveis regiões importantes da Ásia e da África, gerando a expulsão de centenas de milhares de pessoas; prevê-se a maior diáspora da história, ocasionando um caos humanitário sem paralelo. Finalmente, os países ricos enfrentam o envelhecimento e o decrescimento; querendo ou não, vão precisar de migrantes.

Historicamente, a migração internacional em massa sempre foi problemática. O etnocentrismo é forte empecilho à recepção de imigrantes —mesmo em se tratando de intercâmbios entre povos caucasianos.

As populações que irão se deslocar, seja como refugiados de guerras ou de climas, ou para atender à demanda demográfica de países mais envelhecidos, tendem a ser de cor, religião e culturas diferentes daquelas de destino. Alguns profetas bizarros como Elon Musk falam até em "colapso demográfico". Isso reflete claramente uma visão de túnel em que o mundo se resume a países "desenvolvidos" e brancos.

O contexto global inspira pouca confiança para lidar com essas situações enredadas. Os descaminhos da globalização em direção ao ultraliberalismo e ao nacionalismo exacerbado deixaram sequelas graves na governabilidade, em todos os níveis. Os alicerces da democracia estão se desmoronando, enquanto um número cada vez maior de países se entrega cegamente ao autoritarismo. Assim, falta clima e estímulo para identificar, negociar e impl ementar medidas essenciais em nível global.

A grande pergunta não é mais como reduzir o crescimento da população, mas de onde surgirão a motivação e a capacidade para enfrentar essa constelação de intricados problemas geopolíticos, ambientais e humanitários.

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