Descrição de chapéu The New York Times

Missa em latim renasce nos EUA mesmo ante desaprovação do papa Francisco

Modelo integra crescente tendência de direita no cristianismo americano e atrai famílias mais conservadoras

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Ruth Graham
Detroit | The New York Times

Os oito filhos de Eric Agustin costumavam chamar o primeiro dia da semana de "domingo de festa". A família acordava, assistia a uma breve missa matinal numa paróquia perto de casa, depois voltava para almoçar e passar uma tarde descontraída assistindo a futebol.

Mas neste ano eles fizeram uma grande mudança. No santuário de São José, nova paróquia que frequentam, a liturgia é ornamentada, coreografada com precisão e conduzida inteiramente em latim. A família dirige por uma hora para assistir a um culto que começa às 11h e pode durar quase duas horas.

Rev. Canon Jean-Baptiste, center, sprinkles holy water on parishioners at St. Joseph Shrine during a Latin Mass in Detroit, Oct. 2, 2022. Pope Francis has tried to discourage the traditional Latin Mass, but it is instead experiencing a revival in the U.S. and has sparked a sprawling proxy battle in the American church over not just songs and prayers but also the future of Catholicism and its role in culture and politics. (Nick Hagen/The New York Times)
Reverendo Canon Jean-Baptiste borrifa água benta em paroquianos no Santuário St. Joseph durante uma missa em latim, em Detroit - Nick Hagen - 2.out.22/The New York Times

A missa tradicional em latim, antiga forma de culto que o papa Francisco tentou desencorajar, está renascendo nos Estados Unidos: atrai uma mistura de tradicionalistas da estética, famílias jovens, novos convertidos e críticos do papa. E seu ressurgimento, impulsionado pela pandemia, faz parte de uma crescente tendência de direita no cristianismo americano.

A missa em latim provocou uma ampla discussão na Igreja Católica dos EUA não apenas sobre canções e orações, mas também sobre o futuro do catolicismo e seu papel na cultura e na política. Os adeptos tendem a ser socialmente conservadores e de mentalidade tradicional. Alguns, como a família Agustin, são atraídos pela beleza, o simbolismo e o que descrevem como uma forma de adoração reverente.

Outros foram atraídos por uma nova retórica da comunidade de direita que encontraram em grupos online. Eles veem a tentativa do papa de cercear a missa em latim como exemplo dos perigos de um mundo que se desvincula dos valores religiosos ocidentais.

A missa tradicional, a "forma extraordinária", foi celebrada por séculos até as transformações do Concílio Vaticano 2º, na década de 1960, que pretendiam em parte tornar o rito mais acessível. Depois dele, a missa podia ser celebrada em qualquer idioma, a música contemporânea entrou em muitas paróquias e padres se voltaram para as pessoas nos bancos das igrejas.

Mas o culto em latim nunca desapareceu totalmente. Embora represente uma fração dos que são realizados nas 17 mil paróquias dos EUA, está prosperando. O país agora parece ter ao menos 600 locais que oferecem a missa tradicional, o maior número de qualquer nação.

O crescimento se dá enquanto Francisco reprime o modelo, estabelecendo novos limites rígidos ao rito. Seu antecessor, Bento 16, ampliou o acesso à antiga missa, mas Francisco a caracterizou como uma fonte de divisão na igreja e disse que muitas vezes está associada a uma rejeição mais ampla dos objetivos do Concílio Vaticano 2º.

A divisão sobre a antiga missa representa um choque de prioridades e lutas de poder na liderança da igreja. Nas paróquias é mais complicado. Muitos católicos dizem que são atraídos à missa por motivos espirituais, apoiados por preferências estéticas e litúrgicas, não por partidarismo. "Há uma reverência em um nível mais avançado", diz Agustin.

Dezenas de famílias grandes e jovens correram ao santuário de São José desde que ele começou a oferecer regularmente a tradicional missa em latim, em 2016. A paróquia historicamente alemã, com um edifício do século 19 que antes lutava para pagar o consumo de energia, agora está repleta de pessoas.

A missa solene aos domingos começa com água benta espalhada pelo corredor, incenso flutuando e sons de sinos, um órgão de tubos e canto gregoriano. Homens costumam vestir terno e gravata, e a maioria das mulheres usa saias e véus de renda na cabeça.

Apoiando-se na demanda por uma intensa experiência religiosa, muitos adeptos da missa em latim buscam um retorno não apenas a antigos rituais, mas a valores sociais e papéis de gênero. Aqui, o rigoroso não é barreira, mas atrativo que conecta os fiéis a uma longa história de clareza espiritual, o que eles veem como um forte contraste com a igreja moderna.

A Covid acelerou a divisão, pois as paróquias da corrente dominante geralmente ficaram fechadas por mais tempo, levando alguns católicos a procurar novos locais. Muitos dizem que descobriram podcasters e influenciadores tradicionalistas que os levaram à missa mais antiga.

Embora os católicos como um todo sejam um grupo politicamente diversificado nos EUA, frequentadores habituais da missa tendem a ser mais conservadores: 63% dos que assistem à missa ao menos mensalmente apoiaram Donald Trump na eleição presidencial de 2020, em comparação com 53% de participantes menos frequentes, segundo o instituto Pew.

Pesquisas informais descobriram que quem assista à missa em latim não só vai à igreja com mais frequência como também tem opiniões quase sempre conservadoras sobre temas como direito ao aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Num domingo de outubro, ante 300 pessoas, o reverendo Canon J.B. Commins, 33, leu antes da missa um anúncio do arcebispo Allen Vigneron, de Detroit, exortando os católicos a agir para derrotar uma emenda eleitoral que consagraria o direito ao aborto na Constituição do estado. O pleito aprovaria a medida.

Conservadores políticos e teológicos veem na restrição de Francisco à missa em latim um preocupante desrespeito pela ortodoxia em geral.

Desde que Francisco se tornou papa em 2013, ele enfatizou a inclusão e tentou suavizar a abordagem da igreja a pontos críticos como aborto e homossexualidade. Também publicou uma grande encíclica sobre gestão ambiental, orou por imigrantes e nomeou mulheres para papéis historicamente importantes.

O documento "Traditionis Custodes", de 2021, comparável a uma ordem executiva, delimitou onde e quando a antiga missa pode ser celebrada. E, neste ano, ele indignou ainda mais os tradicionalistas com um novo documento, esclarecendo que tensões em torno da missa são mais que uma questão de gosto.

"Não vejo como é possível dizer que se reconhece a validade do Concílio —embora me surpreenda que um católico pense em não fazê-lo– e ao mesmo tempo não aceitar a reforma litúrgica", escreveu.

A repressão alimentou o que alguns chamam de guerras litúrgicas. "Toda uma visão da igreja e o significado de ser cristão e católico estão em jogo", diz John Baldovin, padre e professor de teologia em Boston. "Você não pode dizer que se trata apenas de uma bela missa."

O conflito é particularmente ferrenho nos EUA, onde conservadores dominam a conferência dos bispos e críticos e meios de comunicação contestam regularmente a liderança de Francisco. Em uma conferência em Pittsburgh, críticos do papa apresentaram três "artigos de resistência" contra o Vaticano e sua atual liderança. A principal objeção foi a "Traditionis Custodes", chamada de "ato de discriminação religiosa".

Alguns bispos, incluindo os de Chicago e de Washington, reduziram drasticamente a oferta de missas tradicionais em latim neste ano. Em Detroit, Vigneron permitiu que ela florescesse sem obstáculos.

Em Old St. Mary's, paróquia do século 19 no bairro turístico de Greektown, cerca de 150 pessoas se reúnem para a missa mensal em latim, acompanhada de coro gregoriano. Congregados se ajoelham e murmuram orações. Na hora de receber a eucaristia, seguem em silêncio.

O culto "revela os verdadeiros católicos", diz Kristin Kopy, 41, após o serviço. Seu marido trabalha para o Church Militant, site de ultradireita que critica a homossexualidade, restrições para conter a Covid e o papa Francisco. Kopy tem uma filha de duas semanas, Philomena, e outros mais velhos. Ela e o marido frequentam a missa em latim há seis anos e sentiam que faltava alguma coisa na experiência na igreja.

"Eu não falo latim", afirma ela. "Mas parece que você está se conectando mais com Deus."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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