Venezuelana vê migração frustrada para os EUA após drama com filha em floresta inclemente

Menina se perdeu por três dias ao tentar atravessar região de Darién, entre Colômbia e Panamá

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Julie Turkewitz
Darién | The New York Times

Na escuridão, a garota chamava por sua mãe, a silhueta iluminada pela lua. As duas tinham saído de casa na Venezuela uma semana antes, com destino aos EUA. Para chegar, porém, teriam que atravessar uma selva brutal chamada Darién.

Mas, no caos da jornada, a criança perdeu a mãe. Para conter o medo, Sarah Cuauro, 6, começou a cantar. "A glória de Deus, gigante e sagrada", sussurrava entre lágrimas. "Ele me carrega em seus braços."

Uma combinação devastadora de consequências da pandemia, crise climática, conflitos crescentes e aumento da inflação está provocando uma mudança sísmica na migração global. A ONU diz que existem hoje pelo menos 103 milhões de pessoas deslocadas à força em todo o mundo.

.Luis José Martínez carrega Sarah, 6, enquanto atravessa a floresta de Darién, no Panamá, após a garota perder a mãe
Luis José Martínez carrega Sarah, 6, enquanto atravessa a floresta de Darién, no Panamá, após a garota perder a mãe - Federico Rios Escobar - 6.out.22/The New York Times

Em poucos lugares essa mudança é mais evidente do que no chamado Tampão do Darién, um istmo hostil, pouco povoado e sem estradas que liga a América do Sul à Central. Por décadas foi considerado tão perigoso que só alguns milhares ousavam atravessá-lo a cada ano. Hoje, há ali um congestionamento.

Desde janeiro, pelo menos 215 mil pessoas viajaram pelo Darién, o dobro do ano passado e quase 20 vezes a média anual entre 2010 e 2020. A inundação de migrantes está alimentando um problema político crescente nos EUA, onde 2,3 milhões de pessoas foram detidas na fronteira sul neste ano, um aumento sem precedentes que gera intensa pressão sobre o presidente Joe Biden para conter o fluxo.

Os migrantes que atravessam ali são na maioria venezuelanos, desgastados por anos de calamidade econômica sob um regime autoritário. Ao menos 33 mil dos que fizeram a viagem neste ano são crianças.

Alguns migrantes vêm de famílias extremamente pobres. Mas muitos, como Sarah e a mãe, Dayry Alexandra Cuauro, 36, advogada, já foram da classe média e agora, desesperados pela ruína financeira de seu país, decidiram arriscar a vida na selva. Cuauro deixou a Venezuela com a filha de ônibus, levando passaportes, US$ 820 (R$ 4.384) em dinheiro e uma bênção da mãe.

Para entender a viagem, dois jornalistas do New York Times cruzaram a rota de Darién, de 110 km, em setembro e outubro, entrevistando migrantes, guias, policiais, líderes comunitários e trabalhadores humanitários. A rota começou em uma cidade litorânea da Colômbia, passou por fazendas e comunidades indígenas, atravessou uma montanha extenuante chamada colina da Morte e depois serpenteou ao longo de vários rios antes de chegar a um acampamento do governo no Panamá.

A jornada começa

A selva de Darién já foi uma das florestas tropicais mais intocadas do mundo. Algumas partes eram tão inacessíveis que, quando os engenheiros construíram a rodovia Pan-Americana, nos anos 1930, ligando o Alasca à Argentina, só um trecho importante ficou inacabado: um pedaço sem estrada com cerca de 100 km chamado Tampão do Darién.

Hoje, o caminho mais comum pela região começa na cidade colombiana de Capurganá, onde Sarah e sua mãe desceram de lanchas que anunciavam "turismo responsável" para um cais lotado. Homens de uma cooperativa recém-formada chamada Asotracap conduziram o grupo a um complexo murado, onde explicaram que os migrantes teriam guias que os levariam nos primeiros dias na selva por uma taxa de US$ 50 (R$ 267) a US$ 150 (R$ 802) por pessoa. Sarah e a mãe estavam num grupo com mais nove pessoas. Juntas, entregaram mais de US$ 1.200 (R$ 6.422).

Eles foram levados sobre meia dúzia de morros em uma parte da floresta habitada por pequenas comunidades. No segundo dia de viagem, Sarah e a mãe passaram por um aglomerado de árvores que escondiam um corpo em decomposição numa barraca. No terceiro chegaram a um rio, onde moradores cobravam US$ 10 (R$ 53) por uma travessia de barco de 90 segundos. No quarto, acamparam numa cidade cujos moradores cercaram o local com arame, cobrando US$ 20 (R$ 106) por pessoa para sair.

Na manhã seguinte, pouco antes de chegarem à imponente montanha lamacenta conhecida como Colina da Morte, as duas se perderam.

A separação

A mãe havia pedido a um amigo que havia feito na jornada, Ángel García, 42, para ajudar a carregar a menina. Quando saíram de Capurganá, as botas de Cuauro começaram a raspar sua pele, e seus pés estavam tão cheios de bolhas e pus que ela mal conseguia andar.

García, que tinha deixado seu filho de 6 anos em casa na Colômbia, colocou Sarah nos ombros, olhando constantemente para trás à procura da mãe. Afinal, ele se virou e ela tinha desaparecido.

Naquela noite, Sarah dormiu numa barraca com García e dois de seus amigos. Os homens a mimavam, mas pareciam apavorados com sua nova responsabilidade. Eles não tinham ideia de onde estava a mãe de Sarah ou se ela estava ferida —ou pior.

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Ángel Garcia ajuda Sarah a pular entre troncos, depois de a mãe da garota ficar para trás na trilha de Darién, entre a Colômbia e o Panamá - Federico Rios Escobar - 6.out.22/The New York Times

Eles tinham muito pouco para comer e mais vários dias de caminhada. Precisavam levar Sarah o mais rápido possível até o final da rota, onde acreditavam que haveria autoridades que poderiam ajudá-la. Eles dobraram a barraca. "E minha mãe?", a menina perguntou. "Vamos encontrá-la no caminho", García disse.

Momento de alegria

No oitavo dia de caminhada pela selva, Sarah e García chegaram a um acampamento numa cidade que era a penúltima parada no Darién. Autoridades panamenhas montaram um posto de controle de migração, num esforço para contar o número de pessoas que atravessam a floresta. Eles separaram Sarah de García, colocando-a em um quarto dos fundos com outras crianças que também haviam perdido os pais.

Fazia três dias que Sarah estava separada da mãe. Horas se passaram. E então, de repente, Cuauro apareceu, entrando correndo na sala. O tempo todo ela havia estado apenas algumas horas atrasada, tentando desesperadamente alcançá-los.

A alegria, porém, durou pouco. Como muitos venezuelanos, Cuauro partiu acreditando que, se conseguisse atravessar a selva e cruzar a América Central e o México, os EUA a deixariam entrar.

Como Washington não tem relações diplomáticas com Caracas, não tinha como deportar venezuelanos de volta para casa. E nos últimos meses os EUA permitiram que milhares entrassem no país e pedissem asilo. A notícia se espalhou rapidamente, ajudando a impulsionar uma onda maciça para a fronteira. Agora, no entanto, o governo Biden luta para resolver uma crise humanitária e política cada vez maior.

Sarah e a mãe deixaram o Darién em 10 de outubro. Dois dias depois, o Departamento de Segurança Interna anunciou que os venezuelanos que chegassem à fronteira sul dos EUA não teriam mais permissão para entrar no país.

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Dayry Alexandra Cuauro e sua filha, Sarah, se encontram depois de três dias caminhando separadas na floresta de Darién, entre Colômbia e Panamá - Federico Rios Escobar - 9.out.22/The New York Times

Em vez disso, citando uma ordem de saúde da pandemia do governo Donald Trump, as autoridades disseram que os migrantes seriam enviados de volta ao México. Ao mesmo tempo, 24 mil venezuelanos teriam entrada legal caso se inscrevessem do exterior e tivessem um patrocinador nos EUA.

Os patrocinadores deveriam ser cidadãos americanos ou atender a outros requisitos de residência e demonstrar capacidade de sustentar financeiramente um imigrante durante até dois anos.

Cuauro ficou arrasada. Ela não tinha patrocinador e havia gastado todo o seu dinheiro. Ela acabou num abrigo em Honduras com a filha e uma dúzia de outros migrantes venezuelanos. Lá, esperou que a família juntasse dinheiro suficiente para comprar passagens de volta para casa. Uma irmã dela havia chegado à Flórida meses antes, depois de se entregar na fronteira, e disse que estava correndo para encontrar alguém que as patrocinasse no novo programa de entrada, antes que todas as vagas fossem preenchidas.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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