China usa reconhecimento facial para rastrear manifestantes contra Covid zero

Tecnologia é ferramenta de Pequim em ações para encontrar e intimidar participantes de onda de protestos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Paul Mozur Claire Fu Amy Chang Chien
The New York Times

Em 27 de novembro, quando foi protestar contra as rígidas políticas chinesas da Covid-19 em Pequim, Zhang acreditou que estava preparado para passar despercebido usando balaclava e óculos para cobrir o rosto. Quando sentiu que policiais à paisana o estavam seguindo, o jovem de de cerca de 20 anos se escondeu em arbustos e vestiu uma jaqueta nova para conseguir despistá-los.

Naquela noite, Zhang voltou para casa sem ser preso e achou que não teria problemas, mas a polícia ligou no dia seguinte. Ele foi informado pelas autoridades que seu telefone havia sido detectado na área dos protestos. Vinte minutos depois, mesmo sem dizer o endereço, três policiais bateram à sua porta.

FILE Ñ A monitor displays video showing facial recognition software in use at a Beijing showroom on May 10, 2018. After a weekend of protests, the authorities in China are using the countryÕs all-seeing surveillance apparatus to find those bold enough to defy them. (Gilles SabriŽ/The New York Times)
Monitor mostra software de reconhecimento facial em funcionamento em Pequim, na China - Gillers Sabri - 10.mai.18/The New York Times

Histórias semelhantes foram contadas por manifestantes de toda a China no início de dezembro, de acordo com entrevistas com os alvos e grupos de direitos humanos. As autoridades têm rastreado, intimidado e detido aqueles que marcharam em desafio às rígidas políticas da Covid.

Para isso, estão lançando mão das poderosas ferramentas de vigilância que o país desenvolveu na última década para momentos como este, quando parte da população questionou a autoridade do Partido Comunista Chinês.

A polícia tem usado reconhecimento facial e informantes para identificar aqueles que participaram dos protestos. Normalmente, exigem que a pessoa rastreada se comprometa a não protestar de novo.

Muitas vezes inexperientes quando o assunto é monitoramento, os manifestantes expressaram perplexidade com a forma como foram descobertos. Por medo de novas repercussões, muitos excluíram aplicativos como o Telegram, usados para coordenar e espalhar imagens dos protestos no exterior.

A polícia chinesa montou um dos sistemas de vigilância mais sofisticados do mundo. Milhões de câmeras foram instaladas nas esquinas e nas entradas de prédios, e um poderoso software de reconhecimento facial, que processa imagens e dados coletados, foi adquirido e programado para identificar os cidadãos que moram nas proximidades.

Embora a construção do sistema de vigilância não fosse segredo, para muita gente na China isso parecia algo remoto. A polícia o usa para monitorar dissidentes, minorias étnicas e trabalhadores migrantes. Muitos expressam seu apoio supondo que, se você não fez nada de errado, não tem nada a esconder, mas interrogatórios recentes podem abalar essa tese.

É a primeira vez que o estado de vigilância é dirigido diretamente a um grande número de pessoas de classe média nas cidades mais ricas da China. Embora muitas tenham experiência com censura –e provaram que às vezes podem contorná-la–, uma visita da polícia é menos comum e mais intimidante.

"Estamos ouvindo histórias de policiais aparecendo na porta das pessoas e perguntando a elas onde se encontravam durante os protestos, e isso parece ser baseado nas provas coletadas por meio da vigilância em massa. A tecnologia do 'Big Brother' da China funciona ininterruptamente, e o governo espera que agora mostre sua eficácia no controle da agitação", disse Alkan Akad, que pesquisa China na Anistia Internacional.

As marchas e os protestos estão entre os mais amplos e abertamente políticos desde os de 1989, quando Pequim reprimiu com força militar letal os atos na Praça da Paz Celestial. Agora, as autoridades chinesas podem abafar manifestações.

Experiências como a de Zhang são comuns. Embora soubesse das câmeras de reconhecimento facial espalhadas pelos espaços públicos no país, o jovem subestimou o monitoramento de celulares. Caixas minúsculas com antenas, esses aparelhos passam despercebidos.

Imitando uma torre de celular, eles se conectam ao telefone de todos que passam e registram os dados para a verificação policial. Ainda assim, Zhang que, como outros manifestantes entrevistados para este artigo, não quis dar seu nome completo por medo de represálias policiais, teve sorte. Depois de um interrogatório duro e um aviso para não comparecer novamente a um protesto, a polícia foi embora.

Ele comentou que a provação o deixou aterrorizado e que acreditava que seria eficaz para conter o ímpeto que as manifestações geraram. "Vai ser muito difícil mobilizar as pessoas de novo. Agora, todo mundo vai deixar de ir às ruas", diz.

Para outros, foi o rosto que os entregou. Wang, outro homem que se juntou aos protestos em Pequim, disse que recebeu um telefonema de advertência da polícia dois dias depois da manifestação de 27 de novembro. Ele foi informado de que havia sido identificado com tecnologia de reconhecimento facial.

Ao contrário de outros manifestantes chineses, Wang não cobriu o rosto com chapéu ou óculos escuros, além de ter tirado a máscara de proteção durante o protesto. Ele diz não ter ficado surpreso com a identificação da polícia, mas o uso dessa tecnologia o deixou inquieto. "Eu sabia dos riscos de ir a uma manifestação dessas. Se eles quiserem nos encontrar, vão conseguir".

O telefonema da polícia durou apenas dez minutos, mas o oficial conseguiu intimidá-lo. "Eles afirmaram claramente que não haveria uma segunda chance", diz.

Depois presos ou abordados pela polícia, muitos manifestantes evitaram usar VPN (rede privada virtual) ou outros aplicativos estrangeiros, como o Telegram e o Signal. Segundo eles, há o medo de que, agora que estão no radar das autoridades, os softwares que usam nos celulares possam ser monitorados mais de perto, levando a uma possível detenção.

Um homem, que foi preso em 28 de novembro durante um protesto em Chengdu, no centro da China, contou que a polícia verificou seu telefone enquanto estava detido e viu que ele tinha o Telegram e outros aplicativos estrangeiros. Ele apagou os aplicativos quando foi liberado.

Para muitos manifestantes, o choque de ser identificado funcionou como uma tática de intimidação por si só. Uma mulher chamada Wang, cineasta na casa dos 20 anos, relatou ter se juntado a um grupo de amigos em Pequim na noite de 27 de novembro. Eles tomaram precauções: cobriram o rosto com máscara, pegaram um táxi a vários quilômetros de distância e caminharam até o ponto de encontro.

Mesmo tendo sido avisados para desligar o celular, apenas desativaram os recursos de GPS e Face ID. "Na época, pensamos: 'Tinha tanta gente.' Pense bem: como poderiam encontrar cada um? Como conseguiriam ter energia para pegar todo mundo?", indaga Wang.

Ela e seus amigos ficaram assustados quando receberam telefonemas ou até mesmo a visita da polícia. Alguns foram forçados a ir à delegacia para ajudar a polícia na investigação. "Acho que, se houver uma próxima vez, meus amigos não vão se atrever a ir".

Mesmo assim, Wang conseguiu escapar. Naquela noite, usou um telefone com um número que não estava vinculado a sistemas que pudessem identificá-la, como o software de código de saúde do país usado para rastrear casos de Covid e garantir que as pessoas fossem testadas regularmente em áreas de surto.

Ela não se intimidou com os acontecimentos. "Ainda vou. Se a polícia me encontrar, vamos ver". Quando lhe perguntaram se voltaria a participar de um ato público novamente, ela acrescentou: "Sinto que é preciso ir".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.