Guerra da Ucrânia desafia fôlego militar da Rússia e do Ocidente

Ajuda a Kiev seria o 11º orçamento militar do mundo; Moscou perdeu o equivalente a metade de seus tanques ativos

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São Paulo

O prolongamento do conflito na Ucrânia, o maior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, tem colocado à prova as capacidades militares do invasor russo e do Ocidente, principal fiador da resistência de Kiev.

As perdas humanas e materiais são enormes, assim como o desafio de manter a iniciativa em meio à redução de arsenais à disposição dos beligerantes. Com a entrada do conflito em um novo ano, há mais dúvidas do que certezas sobre o gás à disposição de ambos os lados.

Soldado russo morto ao lado de blindados destruídos perto de Kharkiv no segundo dia da guerra
Soldado russo morto ao lado de blindados destruídos perto de Kharkiv no segundo dia da guerra - Serguei Bobok - 26.fev.2022/AFP

"A verdade é que sabemos pouco sobre o quanto realmente Vladimir Putin havia se preparado para a guerra", diz o cientista político russo Konstantin Frolov, que deixou Moscou e desde maio vive em um país do Leste Europeu que ele pede para não nomear.

Os danos à máquina de guerra russa são, pelo que é aferível, enormes. Segundo o site holandês Oryx, que faz monitoramento militar a partir de fotos e vídeos comprovados e checados por georreferenciamento e outros métodos, Moscou perdeu 1.573 tanques até o dia 15.

Isso equivale a metade de toda a frota de blindados do tipo ativos, novos ou modernizados, contados pelo londrino IISS (Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, na sigla em inglês) em seu balanço de 2021. Como a conta do Oryx inclui modelos que estavam estocados, como o T-64, não se trata de dizer que Putin perdeu metade de seus tanques.

Mas é uma enormidade, e a contagem é conservadora, ainda que não tenha como estimar reforços construídos agora. Ela é ainda menos exata no caso ucraniano porque, como as perdas se dão em seu solo, é natural que haja menos registros de imagens delas.

Diz o Oryx que Kiev já perdeu 435 tanques. Seu inventário pré-guerra era de 987 unidades, e ao longo da guerra a Polônia lhe repassou nada menos do que 230 modelos soviéticos T-72.

Os poloneses, dos mais belicosos e antirrussos integrantes da Otan (aliança militar dos EUA), figuram como sexto maior doador de ajuda militar, financeira e humanitária ao vizinho, ultrapassando em termos nominais países como a França.

Varsóvia fracassou na tentativa de repassar sua frota de 28 caças soviéticos MiG-29 aos ucranianos, algo que a Eslováquia quer fazer, por temor ocidental de provocar Moscou. Até aqui, diz o Oryx, Kiev perdeu ao menos 15 de seus 37 modelos do tipo, além de 5 dos 34 Su-27, mais sofisticado.

Parece pouco: russos perderam 67 de seus 1.391 aviões de combate do pré-guerra, ante 55 de 124 da Ucrânia, com mais de 10% de sua frota avançada de caças Su-30 e aviões de ataque Su-34.

Segundo o Instituto para a Economia Mundial de Kiel (Alemanha), que escrutina as transferências, até o dia 7 de dezembro a Ucrânia já havia recebido US$ 40,2 bilhões em armas e financiamento militar do Ocidente, US$ 24 bilhões vindos dos EUA. Isso é dez vezes mais que seu orçamento anual com defesa em 2021.

Isoladamente, esse valor entraria em 11º no ranking dos maiores gastos militares no ano passado, organizado pelo IISS. O Brasil, por exemplo, despendeu pouco mais do que a metade disso. "Isso mostra uma nova realidade mundial, mas também indica que haverá limites para o Ocidente", afirma Frolov.

"Até aqui, o apoio da União Europeia à Ucrânia sempre ficava atrás do dos EUA. Isso tem mudado nas últimas semanas, o que é um desenvolvimento bem-vindo, dado o grande papel dessa guerra para a segurança continental", escreveu o coordenador do monitor do instituto de Kiel, Christoph Trebesch.

Ao todo, em termos de ajuda total, Washington já desembolsou US$ 51 bilhões com a guerra, enquanto Bruxelas entrou com US$ 55 bilhões. Se esse único cômputo fosse o PIB de um país, o colocaria ao lado de nações como Venezuela e Equador —e o valor ainda não computa a promessa natalina de Joe Biden a Volodimir Zelenski de mais US$ 2 bilhões em armas.

Há poucas dúvidas de que a Ucrânia, que demonstrou excelentes qualidades táticas no campo, não teria resistido aos dez meses de agressão sem a ajuda militar do Ocidente, que agora promete subir um degrau com o fornecimento de baterias antiaéreas americanas Patriot.

Na primeira fase da guerra, os EUA forneceram cerca de 1/3 do seu estoque de mísseis antitanque Javelin para ajudar a conter as colunas blindadas russas, que por um erro tático não invadiram coordenadas com infantaria e mesmo apoio aéreo.

Apesar disso, um estudo recente do think-tank britânico Royal United Services joga matizes nesse cenário, basicamente dizendo que Kiev não caiu na abertura da guerra porque tinha dois batalhões de infantaria trabalhando diuturnamente, exaurindo seus estoques de munição.

A análise, baseada em dados das Forças Armadas de Kiev, também minimiza o impacto que drones de ataque tiveram no curso da guerra —papel mais relevante seria dado aos de observação de alvos e reconhecimento.

Outro item central é inteligência. Não é segredo para ninguém que os ucranianos têm ajuda vital de dados de satélite e informações colhidas pelos EUA e seus aliados. Isso já provocou ameaças russas de toda sorte, mas na prática há pouco a ser feito.

A artilharia e os tanques, vistos precocemente como obsoletos para a guerra como argumenta o analista americano Rob Lee, são centrais no conflito. O comandante geral da Ucrânia, general Valeri Zalujni, disse à revista britânica The Economist que seu país não teria sobrevivido sem a artilharia de precisão Himars americana, e agora implora por mais blindados, munição e defesas antiaéreas.

Do lado russo, há sinais contraditórios. Após meses de relativa calmaria em termos de ataques com mísseis, desde outubro Moscou promove uma campanha brutal contra a infraestrutura energética ucraniana, visando desmoralizar a população e as tropas em meio ao frio congelante do inverno.

Para isso, tem usado mísseis de precisão e balísticos que pareciam ter sumido da guerra. Um analista militar ligado ao Kremlin, que pede para não ter o nome divulgado, afirma que houve um reabastecimento e que de fato a Rússia tem se preparado há muito tempo para o conflito estocando também chips ocidentais —que pararam de ser vendidos ao país com as sanções aplicadas ao país.

Por outro lado, o uso mais intensivo de drones suicidas iranianos na guerra, armas que são muito mais baratas (US$ 20 mil a unidade) que um míssil de cruzeiro (US$ 6,5 milhões), indica no mínimo que Moscou está pensando no longo prazo —se não estiver em apuros de fato, como dizem toda a semana autoridades ocidentais.

Em favor de Moscou, há o fato de que esta é uma guerra de atrito em que artilharia se mostra importantíssima, e os estoques de munição herdados da Guerra Fria são incomensuráveis. Mesmo em tanques antigos, no limite utilizáveis em combate, há nada menos que 10 mil unidades guardadas.

Já os ocidentais correm contra o tempo. "Não há dúvida de que há grande pressão sobre a indústria de defesa", afirmou no começo do mês o subsecretário de Defesa americano Colin Kahl. Como os contratos no setor são complexos e as linhas de produção estavam acostumadas a um ritmo lento, o consumo de armas têm ultrapassado a capacidade de reposição.

Aí entra outra arma de Putin: a economia. Apesar de quase todos os principais atores políticos do conflito terem prometido aumento em seus orçamentos militares, e o mercado ter ficado agitado em favor dos EUA, os temores de uma recessão global e as incertezas decorrentes do embate com a Rússia no campo dos preços de energia têm colocado dúvida sobre a capacidade de pagar a conta.

Não por acaso, os EUA têm insistido em uma solução negociada para a guerra, algo distante da realidade visível por ora. Nunca saem do horizonte a carta da utilização de armas nucleares, insinuada e negada por Putin, e o risco de uma Terceira Guerra Mundial com a Otan.

Assim, os alertas de Kiev de que a Rússia está longe de estar derrotada, como a propaganda ocidental gosta de vender, casam com os indícios de que poderá haver uma renovada ofensiva de Moscou no começo do ano. Hoje, os combates estão centrados no Donbass (leste), anexado ilegalmente por Putin.

Eles decorrem da aparente solução para o principal problema que afligiu os russos em boa parte da guerra: falta de pessoal, apesar de haver quase 1 milhão de militares no país. Com a mobilização de 320 mil reservistas feita a partir de outubro, essas tropas estão ficando prontas para uso.

E sempre há a possibilidade de que Putin force o ditador aliado Aleksandr Lukachenko a usar as forças da Belarus em apoio. Aqui é a lógica da Segunda Guerra Mundial que vale: números contra superioridade técnica pontual.

Ninguém sabe quantos militares de fato morreram na guerra: a Rússia parou de divulgar o número em setembro, quando admitia cerca de 6.000 vítimas. A Ucrânia, por sua vez, diz ter perdido 13 mil soldados. Já os EUA estimam que ambos os lados perderam 100 mil homens, entre mortos e feridos, além da morte de talvez 40 mil civis ucranianos.

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